Fazendo meus comentários sobre as manifestações do MPL a luz de um contexto histórico. Vai ser publicado no domingo (30/06) no jornal Página 20.
Notícias de Pindorama
Por Marcos Inácio Fernandes.
“A miséria é para sempre a violência número um, mas quando a miséria explode temos a violência número dois e quando vem a repressão brutal passamos para a violência número três.” Dom Hélder Câmera (1909 – 1999)
Numa consultoria que estava prestando ao PNUD/MDA para a formação dos agentes de Extensão Rural, que vão implementar o Plano Brasil Sem Miséria – PBSM, me cabia na capacitação, discutir com os cursandos, as origens das nossas desigualdades. Buscar compreender, porque num país tão rico de recursos naturais, de tanta terra, de um povo tão trabalhador, ainda ter 16,2 milhões vivendo abaixo da linha de pobreza, sobrevivendo com até 70 reais por mês.
Na condução do segmento, procurava mostrar que quando os portugueses invadiram a nossa terra, muita água já havia corrido por baixo da ponte. Estávamos na fase civilizatória da humanidade e a burguesia européia começava a plasmar seu projeto de sociedade. Era a transição do feudalismo para o capitalismo com o Renascimento, a Reforma Protestante e o Mercantilismo e as grandes navegações. O Feudo deixava de ser o limite para as transações comerciais. O mercado passava a ser o mundo. Navegar era preciso, viver nem tanto, conforme o lema da escola de Sagres de Portugal, já um Estado Nacional, à época.
A “descoberta” do Brasil, portanto, se inseria nesse projeto da burguesia que teve início no século XVI e teria o seu ápice com a Revolução Francesa de 1789. A origem das nossas mazelas sociais e políticas, nasce com a invasão de Pindorama (em Tupi-guarani, terra das palmeiras). Quando os portugueses aqui aportaram, já encontraram os nossos aborígenes, os habitantes da terra, ao longo da nossa costa e interior. Eram 5 milhões. Hoje não chega a 1 milhão. Eles ainda estavam na fase bárbara da humanidade e algumas tribos ainda praticavam a antropofagia. Os Caetés, por exemplo, comeram o 1º Bispo do Brasil, D.Pero Fernandes Sardinha, por via oral, alerte-se, num naufrágio ocorrido nas costas de Alagoas quando ele ia se queixar ao Papa e ao Rei D. João III, sobre a corrupção e os maus costumes que grassava no Governo de Duarte da Costa.
Antigamente, quando alguém reclamava de um mal feito, o poderoso mandava “se queixar ao Bispo”. A situação naquela época estava tão caótica que foi o Bispo que foi se queixar ao Papa.
Esse governo, segundo o historiador Eduardo Bueno, foi o mais corrupto do período colonial e talvez da história do Brasil. E aqui começo a desmistificar, que a maior corrupção da história é agora e é a do PT, que fez o “mensalão”, que não provou-se, apesar de ter sido investigado pelo Ministério Público Federal, por 7 anos.
A condenação de alguns réus deu-se por uma jurisprudência nova. “O Domínio do Fato”, que em linhas gerais, se considera como bastante para condenar uma pessoa, se ela for autoridade, e estar no escalão superior de uma cadeia de comando. Essa autoridade tem, necessariamente, que saber tudo que se passa, de certo e errado, nos escalões inferiores. Antes dessa teoria ser utilizada pelo STF, aqui no Acre, sem saber o que era isso, um simples motorista da SEAPROF, o Piola, mas que é muito politizado, desmoralizou a teoria do “domínio do fato”. O episódio foi o seguinte: logo que estourou o escândalo do “mensalão” e Lula negou o seu conhecimento, um servidor da CAGEACRE, chegou na SEAPROF e, muito exaltado, vociferava contra o escândalo e dizia que Lula sabia sim, se ele era o chefe. Ao que Piola retrucou: eu acho que Lula não sabia não, como eu garanto que o Jorge Viana (o governador na época) não sabe que você ganha sem trabalhar. Você só vem aqui, bate o ponto e vai embora. E o exaltado, que já tinha batido o ponto, foi saindo de fininho.
Estou falando isso para dizer, que existe a corrupção nossa de cada dia. Na academia, que conheço mais de perto, tem a cola nas provas, assinar trabalho de grupo sem ter participado, copiar trechos e até trabalhos inteiros do Google sem dá os créditos, comprar monografias, etc. No cotidiano do dia a dia tem a corrupção do varejo: levar materiais de escritório das repartições, apanhar os filhos no colégio em veículo oficial, jogar lixo na rua, parar em cima das faixas de trânsito, avançar sinal, dá atestado médico frio, não devolver troco errado, furar filas, subornar e aceitar subornos, fazer “gato” de luz, e, o mais trágico, trocar e vender o voto.
Como bem observou João Ubaldo Ribeiro. O problema não esta restrito apenas aos políticos com mandatos, as autoridades, mas também ao cidadão comum, que se escandaliza com os grandes escândalos e, mesmo assim seletivos, e acha natural e aceitável as pequenas infrações que eles cometem no dia a dia e é condescendente com a postura dos governantes que “rouba mas faz” como Ademar de Barros (seu inventor) e seu maior seguidor, Paulo Maluf.
Por que somos assim? Tenho algumas suspeitas. Nos cursos, eu dizia que a origem do “jeitinho brasileiro” e do nepotismo (emprego de parentes na máquina pública) começou quando Pero Vaz de Caminha, na sua carta ao Rei D. Manoel, relatando o feito do “descobrimento” falando das belezas e as boas condições da terra para o plantio, ao seu final, pedia uma melhor colocação para o seu genro Jorge de Osório, conforme registra a carta: “Peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de S. Tomé, Jorge de Osório, meu genro,o que d´Ela receberei em muita mercê.Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste porto seguro da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500” Nascia assim o nepotismo, que até hoje, assola os três poderes da República, inclusive, no Supremo Tribunal Federal, onde a esposa do Ministro Gilmar Mendes é funcionária de um grande escritório de advocacia, que tem causas no Supremo.
Dizia também que outra das nossas mazelas a impunidade, teve origem no Alvará dos Degredados de 1535. Para colonizar as nossas terras, o Rei português anistiou os criminosos e toda espécie de bandidos da Metrópole. Aqui se tornou terra de “couto e homizio” até por sentenciados “em pena de morte”. Bem ao contrário da América do Norte, que foram colonizados por famílias constituídas da Inglaterra. Eis o documento: "Atendendo El-Rei a que muitos vassalos, por delitos que cometem andam foragidos (...) que passem para as Capitanias do Brasil que se vão povoar, há por bem declará-las couto e homizio para todos os condenados por sentença até em pena de morte, excetuados somente os culpados por crimes de heresia, traição, sodomia,e moeda falsa. Por quaisquer outros crimes não serão os degredados para o Brasil de modo algum inquietados ou interpelados.” (Alvará dos Degredados de 05 de outubro de 1535, assinado pelo Rei D. João III ).
A impunidade, portanto, é uma marca registrada da nossa Justiça, que além de cega é paraplégica. Aqui os crimes prescrevem, os processos levam décadas para serem concluídos, se concedem habeas corpus em profusão (só o banqueiro Daniel Dantas ganhou dois em 24 horas) e se contemporiza com os crimes de sonegação fiscal. Nunca é demais lembrar que nos EEUU, o que levou Al Capone à cadeia, foi o fisco, a lavagem de dinheiro.
Aqui ninguém fala no “mensalão da Globo” que deve de Imposto de Renda, cerca de 615 milhões e está para ser multada em 183,14 milhões. Há mais de 80 mil processos civis de improbidade administrativa e processos penais de crimes contra a administração pública para serem julgados. O próprio Presidente do CNJ e do STF, Joaquim Barbosa, considera inaceitável tanta morosidade.
A terceira herança maldita, que explica a concentração de renda e as desigualdades sociais no nosso país foi a forma como a terra foi distribuída. O loteamento em 14 lotes das Capitanias Hereditárias. Já alertava Alberto Passos Guimarães na sua obra clássica “Quatro Séculos de Latifúndio: “ É sob o signo da violência contra as populações nativas, cujo direito congênito à propriedade da terra nunca foi respeitado e muito menos exercido, é que nasce e se desenvolve o latifúndio no Brasil. Desse estigma de ilegitimidade que é o seu pecado original, jamais ele se redimiria."
E o Brasil ainda não se redimiu desse estigma de ilegitimidade. Vamos entrando para o quinto século de latifúndio, com a concentração de terras e de renda sendo uma das maiores do mundo. Apenas 7 países apresentam uma distribuição de renda pior que a nossa. São eles: Bolívia, Colômbia, Honduras, Angola Haiti, Camarões e África do Sul. Os mais de 300 anos de escravidão faria o resto. Ademais, fomos o último país a libertar os escravos e, quando o fizemos, ao contrário dos americanos, onde cada escravo ganhou 65 acres de terra e um par de mulas para começar a sua vida, aqui os escravos foram “libertos” com as mãos abanando. Como bem disse Millôr Fernandes: “A princesa Izabel botou o preto no branco, mas o branco continuou a botar no preto.” E bota até hoje.
Mas, “o Brasil não é para principiantes” dizia Tom Jobim. Apesar de ser constituído por três “raças muito tristes” (Vinicius de Moraes), o português degredado, o índio perseguido e quase exterminado e o negro escravizado, conseguimos fazer dessa mistura um povo bom, alegre, solidário, trabalhador, festivo e criativo e de uma cultura extraordinária. O mestre Luís da Câmara Cascudo tem razão quando pontificou: “O melhor do Brasil é o brasileiro”
Hoje, quando vivemos um ciclo virtuoso na nossa sociedade (Democracia, emprego quase pleno, inflação controlada, melhor distribuição de renda (40 milhões de pessoas mudando de patamar de renda) e o país voltando a retomar o crescimento, eclode essas manifestações de massas dos jovens por todo o Brasil, um fenômeno, que está a desafiar a análise dos mais abalizados cientistas sociais e políticos. Com certeza não é só pelos vinte centavos do aumento da passagem do transporte urbano de São Paulo. Arrisco a dizer que, talvez seja, por todas essas iniqüidades acumuladas ao longo da nossa história, onde o maior mal que fizeram ao povo foi negar-lhe a participação, a fala como alertou o Pe. Vieira, no seu Sermão da Visitação de Nossa Senhora, em Salvador, nos idos de 1640. “O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão”.
Como disse o Gonzaguinha “eu boto fé é na rapaziada”...E boto mais fé, nos cidadãos organizados, com lideranças, nas suas entidades representativas, as mais diversas. Fico pensando: se essa juventude, pequeno burguesa, classe média, como se diz, já fez esse estrago todo, botaram até o parlamento para trabalhar. Imagine quando “o morro descer e não for carnaval”, como diz o belo samba de Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro. Espero que as manifestações dessa juventude, ainda muito despolitizadas, sejam suficientes para fazer os poderosos ouvirem os clamores da razão de que nos falava o padre Vieira. Fico cantarolando Lupicínio Rodrigues: “Esses moços, pobres moços, ah! se soubessem o que eu sei...” Eu sei muito pouco, mas desconfio de muita coisa, já nos ensinava o mestre Guimarães Rosa.
• Marcos Inácio Fernandes, é Mestre em Ciências Política e militante do PT
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