quinta-feira, 23 de maio de 2013

LUÍZ DAMASCENO - A REVERÊNCIA DO BLOG.



A homenagem de Pedro Vicente à Luíz Damasceno - o amigo dos livros -  um amigo da gente, que tive o privilégio de conhecer na década de 60/70 em Natal. Compartilho o texto do Pedro, que faz parte do livro em homenagem ao Lula. "Viva Luíz Damasceno" (MIF)

Memórias - Varal das Lembranças:

Luís Damasceno, o bom camarada - Pedro Vicente Costa Sobrinho Socorro Costa e Luís Damasceno - 1° Bienal do Livro de Natal 1964.

 Havia eu chegado a Natal, lembro-me bem, já fazia quatro meses, quando vim então a conhecer Luiz Damasceno. O golpe militar me fizera sair de Pernambuco, e o exílio mais próximo e possível era o Rio Grande do Norte. Em Natal morava minha tia Nazaré, e ela, apesar dos transtornos que minha não esperada vinda acarretou, com todo o carinho e solidariedade acolheu o sobrinho fugido em sua casa. Todos os meus primos, com exceção dos mais novos, tinham longa convivência comigo, desde Macau, Jaboatão, Afonso Bezerra, e ora em Natal, e por isso, certamente, eu não era um estranho no ninho, e minha adoção de certo modo foi muito tranquila. Logo ao chegar eu saí à procura de emprego, coisa nada fácil em Natal à época. Muitas foram as minhas andanças pela cidade; longas caminhadas que cobriam quase diariamente o percurso do Alecrim à Ribeira, Tirol, Petrópolis e, algumas vezes, se estendiam até as Rocas, Santos Reis, Areal e Praia do Meio. Meus pés acumularam calos que até hoje alguns os tenho como herança. O ponto de parada e descanso sempre foi a Concha Acústica, na Praça André de Albuquerque; o motivo era a pequena biblioteca que lá se encontrava instalada. O acervo era precário, mas continha obras essenciais da literatura brasileira e estrangeira. Além disso, o leitor que ali se abrigava recebia um tratamento sempre amigável, afável e orientador de parte das atendentes; meninas sensíveis que demonstravam um carinho todo especial pelo livro e pela leitura. De uma delas, que sobre mim exercia um certo fascínio, eu recebi especialmente as primeiras informações sobre a vida intelectual da cidade, seus artistas, seus escritores, seus poetas e, sobretudo, quanto ao mestre Luís da Câmara Cascudo; Zenira era o seu meigo nome. Zenira, que sempre eu a via com o rosto tranquilo e sorriso aprazível, tornou-se então minha amiga e foi, ela, a primeira pessoa a me falar da Livraria Universitária e do seu já lendário animador cultural Luís Damasceno. A biblioteca da concha acústica era, certamente, o único ponto de leitura que restou na cidade do sonhado projeto de instalação de uma rede de bibliotecas populares do prefeito Djalma Maranhão. A devassa instaurada pelo golpe militar de 1964 realizou então em todo país o expurgo do livro, por ser sua leitura por certo perigosa e aliada inconteste da subversão ora banida de nossa pátria Brasil. Natal não poderia ser exceção à regra, e ali na biblioteca fui informado de uma exposição pública, patrocinada pelos militares, de livros subversivos que se encontravam nas prateleiras da famigerada rede municipal de bibliotecas populares. Gozado, dessa devassa potiguar escaparam na biblioteca alguns livros da chamada literatura proletária brasileira, que e eu tive oportunidade de ler graças à indicação de Babá, outro habitante da Concha Acústica. Na Concha Acústica, eu fiz muitos amigos, igualmente leitores, especialmente de residentes da Casa do Estudante. Dessas amizades eu destaco a que fiz com Babá, marinheiro expurgado pelo golpe militar, exímio nadador e, sobretudo, um bom leitor. Na biblioteca também eu fui encontrado por Wandesval Dias Luna, ferroviário ligado ao PCB que, depois de ser preso e espancado no cárcere do DOPS de Recife, fora transferido para Natal. Wandesval esteve hospedado no Hotel Bom Jesus, esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Juvino Barreto. Durante nossa rápida porém instigante conversa, ele ainda me falou que ficara impressionado com a Livraria Universitária e também me fez referência a um certo Luís, que o havia atendido e indicado alguns livros:” o cara parece que advinha o que a gente tá querendo; eu me senti com a foice e o martelo na testa”. Dias depois, quebrando as regras mínimas de segurança, o procurei no hotel e fui avisado de que policiais vindos de fora o haviam levado preso de volta para Pernambuco. Anos depois eu soube através de Lenito França, amigo e companheiro do PCB, que Wandesval havia sido várias vezes detido, e certamente torturado no DOPS em Recife, e por fim demitido de seu emprego na Rede Ferroviário do Nordeste. Babá, Zenira e eu papeávamos sobre livros, política, acontecimentos culturais e outras amenidades, isso quase todos os dias, pois sempre, eu e ele, procuramos nos encontrar no turno de trabalho em que Zenira lá estava. Em um dos nossos encontros, Babá convidou-me a ir juntos até a Livraria Universitária, pois ele queria me apresentar ao galego Luís Damasceno. Eu já tinha ido àquela livraria, mas, por estar no liseu, ficava meio encabulado a bisbilhotar livros expostos na vitrine sem ousar pedir acesso a alguns, que me atraiam pelo simples desejo do manuseio sedutor. Cruzara algumas vezes com o galego Luís, criatura fácil de identificar, pois a descrição que me haviam feito dele não deixava margem pra equívocos, qualquer dúvida ou erro. Babá, logo ao entrar, foi abordado pelo tal galego Luís, que lhe disse haver chegado algumas novidades que certamente eram do seu interesse. Babá aproveitou o momento para me apresentar, dizendo-lhe que estava trazendo mais um freguês. De rápido nos identificamos e a partir dessa hora nos tornamos amigos. Passei a visitar regularmente a livraria e mesmo sem comprar, por não poder, nenhum livro, Luís sempre me dava o melhor de sua atenção. Apresentou-me aos seus colegas de trabalho e aos seus muito conhecidos, sobretudo aos que eram de sua geração; todos eram então habitantes assíduos do cotidiano da livraria. Através dele conheci o pessoal do Cine Clube Tirol, os frequentadores da universidade das cocadas e tantos outros jovens: estudantes, poetas, pintores e virtuais escritores, que pouco tempo depois vieram a publicar seus livros. Logo que consegui emprego no Departamento Estadual de Imprensa, nos bons tempos em que era seu diretor o saudoso João Ururahy, tornei-me também um assíduo freguês da Livraria Universitária. Luís então me facilitou o crédito, e pude então fazer minhas primeiras aquisições de livros em Natal. Ele sempre ajudava para que as pessoas obtivessem crédito e pudessem ter acesso à leitura; era uma fichinha simples, parecendo coisa de prestamista judeu ou árabe. Outro papel importante que Luís exercia com mestria, graças a sua boa informação sobre o mercado editorial, era o de orientar o leitor quanto aos livros nacionais e importados naturalmente do seu interesse que a livraria dispunha e, ainda, o de recomendar ao livreiro Walter Pereira a aquisição de obras de qualidade inquestionável em qualquer área do saber. Comprei muitos livros recomendados por Luís. Lembro-me bem que li parte da obra de Albert Camus graças à indicação de meu bom camarada: O estrangeiro, A queda, A peste, Calígula, Bodas em Tipasa, O mito de Sísifo. Ainda conservo daquele tempo no meu acervo O estrangeiro, Edição Livros do Brasil – Lisboa, com a longa introdução de Jean-Paul Sartre. Durante mais de quarenta anos convivi com Luís Damasceno. Acompanhei durante todos esses anos suas caminhadas e travessias na vida profissional: animador cultural na Livraria Universitária; dono de bar amador associado ao meu grande amigo Jaime Ariston; sua saída com Batista, Gonzaga e Antônio Capistrano para a Livraria Opção; seu projeto de livreiro associado a Edmundo, e até à sua chegada a Cooperativa Universitária; e quase fui o fautor de sua ida para Rio Branco, quando eu, então, dirigia o SESC e SENAC no Acre. Engraçado, quando Luís mudava de trabalho, ele tinha o dom de levar com ele sua fiel freguesia, pois muitos desses habitantes de livrarias haviam se tornado também seus amigos, eu fui um deles. Fomos juntos muitas vezes ao Bar Granada, do espanhol Nemésio. Fizemos algumas excursões gastronômicas à Recife. Nos freqüentamos muito, na minha e na sua casa. Éramos bons companheiros. Fui seu instrutor num curso de formação política do Partido Comunista Brasileiro. Fomos camaradas no PCB, nos anos de chumbo, governo Médici, de triste memória. Lembro-me bem do seu sequestro pelos agentes e torturadores do DOI-CODI. E quero contar parte dessa história, menos pelo seu lado trágico, mas pelo cômico. Um dia depois do seu sequestro, eu, Jaime Ariston, Ana Maria e Ivonilde sua esposa saímos à procura de ajuda de qualquer natureza para localizá-lo; então, fomos levados por Ruben G. Nunes (Rubão), ora oficial da Marinha, até o chefe local do CENIMAR, um certo Cmte. Décio, pra ver se assim conseguíamos informação confiável sobre seu paradeiro; segundo Décio não era coisa local, o caso, portanto, estava fora de sua alçada, e esse pessoal que sequestrara Lula agia de modo autônomo e não dava pra ele a mínima satisfação. Vejamos, agora, o lado cômico. Frustrada a iniciativa junto ao Décio, nos despedimos de Rubão e, daí, então, fomos até a casa do saudoso advogado Varela Barca; ele nos atendeu prontamente e Jaime relatou os fatos. Varela não conteve o riso. Aquele riso franco, vibrante e extenso que lhe era peculiar: uma soberba gargalhada. Jaime ficou meio atônito e chateado: “porra, Varela, a coisa tá feia”. E Varela então replicou, “Jaime, desculpe-me, é que eu fiquei a imaginar o drama de Luís, com sua já popular inquietude; que não consegue parar um segundo sequer num só lugar, e ver-se isolado num cubículo de dois metros por dois; ele, com certeza, já deve ter abalroado várias vezes contra as paredes da cela. E, por sua vez, meu caro, isso pode até ser de bom proveito pro galego Lula, pois servirá naturalmente pra fortalecer sua convicção e vigor revolucionários, e, sobretudo, para consolidar sua reputação de homem de esquerda.” Nós, apesar de constrangidos, tivemos que fazer coro e rir com o “humor negro” de Varela; certamente por imaginar e reproduzir a situação que ora fora por ele descrita. Passado isso, Varela foi extremamente gentil e receptivo e, sabiamente, nos orientou sobre qual seria o caminho mais adequado a seguir para o momento, pois o lado jurídico ele cuidaria e tomaria as providências quando oportunas. No nosso longo convívio também tivemos diferenças e algumas brigas, mas nada que levasse ao rompimento de nossos fortes laços de amizade. Homero Costa, certo dia comentou que Antônio, cunhado de Luís, pediu pra que ele citasse o nome de um amigo, e Luís disse-lhe: – Pedro Vicente. Tenho muitas histórias a contar sobre Luís Damasceno, e se me fizessem a mesma pergunta, sobre um amigo, eu daria a mesma resposta. É assim que vejo Luís: o Livreiro, o leitor, o agitador cultural e, sobretudo, o ínclito amigo dos livros, meu bom camarada!

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