quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

TEXTO DE MINO CARTA NA CARTA CAPITAL


Que diria Raymundo Faoro desta hora brasileira? Dirijo a pergunta aos meus nostálgicos botões ao ser lançado pela Editora Globo um livro que reúne entrevistas do grande pensador. O momento da publicação não foi escolhido por acaso, estamos no fim do ano do cinqüentenário da primeira edição de Os Donos do Poder pela mesma editora. Obra-prima de Faoro, chave definitiva para entendermos o Brasil e a nós mesmos. Intitulado A Democracia Traída, organizado por Mauricio Dias, por longos anos ligado a Faoro pela admiração e pelo afeto, e prefaciado pelo acima assinado, o livro coleta quinze entrevistas de Faoro a equipes que dirigi entre 1979 e 2002, as sete últimas em CartaCapital. O título resume o pensamento que perpassa e sustenta a fala do entrevistado, alicerçada no ceticismo e temperada pela ironia. Trata-se da demonstração, inexorável, arrisco-me a dizer, do teorema do Hércules-Quasímodo, ser contraditório, patético na sua ambigüidade, destinado a semideus e condenado a Corcunda de Notre Dame. É a condição de um país excepcionalmente favorecido pela natureza e entregue até hoje às vontades e artimanhas de uma elite feroz. Em pouco mais de duas décadas, ao longo das entrevistas que se tornaram tradição nas nossas redações e nas nossas vidas, Faoro denuncia, como escreve Mauricio Dias, uma negociação política “realizada segundo os princípios daquelas transações que resultam sempre na frustração dos movimentos sociais e na conseqüente traição da democracia”. Resultado: “A anistia para os torturados implicou absolvição para os torturadores” e a campanha das Diretas Já conduziu “à eleição indireta e desdobrou-se a seguir na vitória de um rebento do regime popular”. São os efeitos da eterna conciliação oligárquica, boa parte antecipados nas entrevistas, o que me levou a batizar Faoro de O Profeta. Ele, obviamente, esquivou-se. Não fugiu, porém, à explicação. “O profeta – disse no dia 6 de dezembro de 2000 –, não é exatamente quem prevê coisas. Isso é uma tradição tardia na história do judaísmo. Profeta é a pessoa que tem uma mensagem e que vem para dizer alguma coisa, é esse o sentido original da palavra. E que vem, inclusive, para fazer a crítica.” Como se vê, não me enganei. E ele foi, desde sua saída da presidência da OAB, meu conselheiro, mentor e guia, além do amigo de todas as horas. E foi, estou certo disso, para todos nós que aportamos à CartaCapital, depois de passar por IstoÉ, pelo Jornal da República, por Senhor, por IstoÉ Senhor, por IstoÉ segunda fase. Agora nos faz aquele gênero de falta que não é possível preencher. Volta e meia me ocorre imaginar o que ele diria diante de cada circunstância. A última vez em que pude interrogá-lo foi no começo de 2003. Conto no prefácio: “Quando finalmente Lula se elegeu, no segundo turno do pleito de 2002, Raymundo já estava no hospital, do qual só sairia para o enterro, em abril do ano seguinte. Ficou emocionado com a vitória do seu candidato, disse estar com sorte ao participar de um momento que já perdera a esperança de viver. Mas em fevereiro de 2003 manifestava algumas dúvidas quanto aos primeiros passos do novo governo”. E que diria hoje, quando o bastião do Estado de Direito atende pelo nome de Gilmar Mendes? Ou quando o Banco Central do senhor Meirelles mantém os juros na estratosfera enquanto os Estados Unidos praticamente os zeram? Ou quando a maioria dos brasileiros apóia incondicionalmente o presidente Lula, mas quem manda ainda é a minoria branca? Ou quando já sabemos que em 2010 não será eleito outro torneiro mecânico? Etc. etc. e etc. Creio que o profeta-mensageiro registraria o resultado de suas mensagens. Em 1998 dizia: “O eventual governo Lula não será revolucionário, a idéia da revolução já está banida da cabeça dele”. E em maio de 2002, ao acreditar na possibilidade da vitória de Lula: “O PT poderia mudar a orientação histórica do País, que é um país de exploração, o pobre é cada vez mais pobre. Lula significaria a vitória de uma camada contra a outra. Governar, porém, contra as pessoas que no Brasil estão por cima é quase temerário. Por outro lado, se Lula for eleito e contemporizar (...) passará a ser um governante como os outros. Essa mudança é o passo mais difícil de ser dado”. Democracia, dizia Faoro, é igualdade e distribuição de renda, metas ainda distantes no Brasil de hoje. Por isso entendia que o confronto entre direita e esquerda justifica-se plenamente neste país cujo Estado é por fazer, nesta República inacabada.

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