Coando
as Memórias
(Minhas
lembranças do golpe de 64)
*Marcos Inácio
Fernandes
“Desconfiai
do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural.
Pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar.”
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural.
Pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar.”
(Nada É
Impossível de Mudar – Bertolt Brechet)
Nesse ano da graça de 2014,
muitas manifestações para rememorar o golpe político-militar de 1964, que
completa 50 anos e, que por 21 anos, infelicitou o país, constituindo o período
mais longo de uma ditadura no Brasil. As vivandeiras do golpe até promoveram
uma nova “Marcha da Família com Deus” como em 64 e Bolsonaro protocolou, na
Câmara dos Deputados, um pedido de uma sessão solene para rememorar e comemorar
os 50 Anos da “Revolução” de março de 64. Como diria Marx,é a história se
repetindo como farsa.
Com tantas manifestações
acontecendo, algumas até extravagantes, como as que pedem o retorno dos
militares, eu me atrevo a relatar e compartilhar a minha experiência com o
golpe, que me alcançou no esplendor dos meus 16 anos, quando cursava o último
ano do Ginásio (4ª série) no Ginásio Augusto Severo em Parnamirim-RN e não
fazia a, mínima idéia, do que estava se desenrolando no país.
É necessário,
entretanto, que retrocedamos um pouco no tempo para entender o que se passou em
64, embora esse texto não tenha nenhuma pretensão histórica, mas apenas de
descrever as lembranças pessoais, as vivências, que a minha memória reteve,
antes, durante e depois do golpe.
Remonto à 10 anos
atrás. Em 1954, morava na ilha de Fernando Noronha, onde meu avô materno
trabalhava como Diarista de Obra no destacamento da FAB (Força Aérea
Brasileira) e meu pai, que era militar da Aeronáutica, serviu por alguns anos
no pós-guerra. Naquele fatídico 24 de agosto, fui para a escola do Território
(já estudava no 1º ano, apesar da minha tenra idade de 6 anos) e antes de
entrarmos para as salas, formávamos no pátio e algum aluno hasteava a bandeira
ao som do Hino Nacional executado em disco e cantado pelos alunos. Naquele dia
não houve formatura e a bandeira já estava hasteada a meio pau, quando a diretora
nos avisou, compungida, que não haveria aula em face da morte do Presidente
Vargas. De volta a minha casa, o que me chamou atenção, foi a expressão
comovida de meu avô ao pé do rádio ouvindo os boletins noticiosos do Repórter
Esso (A Testemunha Ocular da História), que a todo instante entrava no ar.
Aquela vinheta do Repórter Esso, até hoje, não me sai da cabeça. Com um tiro no
seu próprio peito, Vargas “deixava a vida para entrar na história” e adiava o
golpe em 10 anos.
Alguns anos depois
houve outra tentativa de golpe, quando Jânio Quadros renunciou em 1961, e os
militares tentaram impedir a posse do Vice-Presidente eleito, João Goulart. (Naquela
época se votava, nominalmente, para vice - Presidente, tanto que Jango, que era
da chapa do PTB/PDS, se elegeu com Jânio, que era da UDN. Foi a famosa
dobradinha “Jan-Jan”). O que eu me lembro dessa época, foi que o então
comandante da Base Aérea de Natal, coronel Burnier, que era um militar linha
dura e com pendores golpistas, ( já havia participado do levante da Aeronáutica
contra o governo de Juscelino em Aragarças em 1959), colocou todos os militares
da Base de prontidão, que durou vários dias. Meu pai, que ainda estava na
ativa, ficou muitos dias sem vir em casa. Burnier, que chegou a Brigadeiro,
anos depois, seria protagonista de episódios dos mais infames do regime
militar. Sob o seu comando no quartel da 3ª Zona Aérea no Rio de Janeiro,
ocorreu a prisão e desaparecimento do ex – deputado, Rubens Paiva, a prisão e
assassinato de Stuart Angel, ambos em 1971, e o rumoroso caso, de tentar usar a
tropa de elite da Aeronáutica, o PARASAR, para cometer atentados terroristas no
Gasômetro do Rio e seqüestrar opositores do regime para jogar no mar. Esse
tresloucado ato só não se concretizou graças a reação do capitão do PARASAR,
Sérgio Miranda de Carvalho ( o Sérgio Macaco), que não só descumpriu a ordem
extravagante, como a denunciou a seu superiores, inclusive, ao Brigadeiro
Eduardo Gomes. Em carta encaminhada ao Presidente Ernesto Geisel, relatando o
fato, Eduardo Gomes, se referiu a Burnier como um “insano mental, inspirado por
instintos perversos e sanguinários”.
Em 1964, o que ficou na
memória dos primeiros dias do golpe foi o posicionamento de tropas do Exército
em pontos estratégicos da cidade de Natal, durante os primeiros dias de abril.
Lembro que quando fui assistir a um filme no cine Rio Grande, tinha uns sacos
de areia e soldados com metralhadora perto do cinema. Não me recordo o filme
que vi naquele dia, mas lembro que no jornal (me parece que o Canal 100), que
antecedia o filme, mostrou o grande comício do dia 13 de março na Central do
Brasil, onde Jango anunciou as Reformas de Base e ouriçou os golpistas. O golpe
já havia acontecido e iria mergulhar o Brasil na sua ditadura mais prolongada e
sanguinária. Naquela época eu não fazia a mínima idéia do que estava se
passando e seguia, sem maiores preocupações, para a conclusão do ginásio.
O
contexto do ano de 1964.
Em 64, o Santos, com Pelé e companhia,
sagrava-se bi-campeão Paulista vencendo a Portuguesa. No Rio, foi o Fluminense,
que derrotou na final, o Bangu por 3X1. Na música, Baden Powell e Vinicius de
Moraes, compunham Berimbau, dando início aos Afro Sambas e a uma das maiores
parcerias da MPB. Silas de Oliveira compunha o samba enredo do Império Serrano,
“Aquarela Brasileira”; Zé Keti, compunha, “Diz Que Fui Por Aí” e Nelson
Cavaquinho, a sua antológica “Luz Negra”. Já no cancioneiro internacional, o
sucesso do ano foi La Bamba e o bolero Encadenados (Acorrentados), que Lucho
Gatica interpretava e que talvez profetizasse a situação em que mergulharia o
Cone Sul (Brasil, Uruguai, Chile e Argentina) nas ditaduras mais sanguinárias –
“um mundo de delírios” – como dizia o bolero.
Na cinematografia
nacional, Glauber Rocha produzia o seu “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, que se
tornaria o marco do Cinema Novo e Ruy Guerra produzia “Os Fuzis”. Internacionalmente,
era lançado o 2º ou 3º filme da série 007, o antológico “007 Contra
Goldfinger”, que imortalizaria Sean Conery, com o melhor dos Bonds. Mas o filme
de 1964, que é a cara do que aconteceu no Brasil, foi o Western de Sérgio Leone
com Clint Eastwood, “Por Um Punhado de Dólares”. Aqui não foi só um punhado de
dólares que os EEUU, investiu no golpe, foram milhões de dólares, fora as 6
malas cheias de dólares que o general Amaury Kruel, do II Exército de São Paulo,
embolsou, conforme denúncia recente do Major do Exército Erimá Pinheiro
Moreira, testemunha ocular do suborno milionário.
Minha experiência com a ditadura.
No início dos 70, eu já havia concluído meu
curso secundário na Escola Agro-técnica de Jundiaí em Macaíba – RN e já tinha
uma certa compreensão do que estava ocorrendo no Brasil, onde o golpe dentro do
golpe – o AI-5 – estava em pleno vigor . Mas a minha paixão era o futebol e
jogar bola. Eu era um meio de campo que jogava até razoável (fui da seleção de
Jundiaí e campeão do Interior pelo time de Parnamirim). Durante algum
tempo joguei pelo time do sítio de
Japecanga,(um engenho de fogo morto) perto da minha cidade, Parnamirim. Foi
nesse encontros futebolísticos, que conheci o Silton,( José Silton Pinheiro)
que também jogava no time local.
Na primeira vez, que estive em
Japecanga, o que me chamou atenção foi o fato de um rapaz daquelas brenhas está
assobiando músicas do Edu Lobo e Geraldo Vandré. Era o Silton. Após esse
primeiro jogo, retornamos no caminhão do time de Natal e entabulamos conversa
sobre as músicas que ele estava cantarolando. Informei-lhe que eu gostava da
MPB e que escutava os programas de rádio de Irapuã Rocha, na Rádio Rural, e o
de Rubens Lemos, na rádio Cabugi. O prefixo do programa do Rubens Lemos, dizia
“Acorda samba do Brasil....” Fiquei
sabendo que ele ia fazer vestibular para Educação, que havia concluído o 2º
grau no colégio Marista de Natal, que era do movimento estudantil e que havia
sido criado por D. Lira, sua mãe adotiva. Na oportunidade lhe informei que
também era secundarista e que estava pensando fazer Sociologia e ele, com o seu
jeito expansivo e alegre, fêz a uma festa e me deu a maior força.
Desde então, ficamos amigos e
freqüentávamos a casa um do outro. Continuamos a jogar no time de Japecanga. Em
1971, passamos no vestibular para as nossas áreas e a amizade evoluiu para um
companheirismo partidário. Através do Silton eu pude enveredar pela trilha
revolucionária que os jovens acalentam e acabei sendo “recrutado” para militar
na FREP (Frente Revolucionária Popular), uma frente capitaneada pelo PCBR, no
nordeste.
A minha militância
“revolucionária” se restringiu a algumas leituras de textos clássicos da
literatura socialista: O Manifesto Comunista, Esquerdismo: a Doença infantil do
Comunismo, O Estado e a Revolução e romances do Jorge Amado: Subterrâneos da
Liberdade, poesias de Brechet e Castro Alves e por aí. Através do Silton, tomei
conhecimento do trabalho de Geanfrancesco Guarnieri, “Arena Canta Zumbi” e de
“Liberdade, Liberdade” de Flávio Rangel e Millôr Fernandes. Esse trabalho teatral
sobre a Liberdade já estava censurado, mas o Silton, ainda conseguiu comprar um
LP e me presenteou. Guardo esse presente até hoje. Agora, recentemente, já no século XXI, consegui esse trabalho em CD na coletânea das duas coleções da Nara Leão, que na época
participava do elenco da peça.
As minhas ações “revolucionárias” se restringiram a duas panfletagens.
Uma no cine Nordeste (jogar uns panfletos na parte de cima do cinema durante a
projeção) e a outra dentro de um ônibus de linha que transportava trabalhadores
nas primeiras horas da manhã de um bairro de Natal que eu não sabia qual era
(tinha ido dormir no aparelho e de lá para o local da atividade, sempre de
olhos vendados).
Na primeira semana de faculdade,
na Fundação José Augusto, que oferecia os cursos de Sociologia e Jornalismo, recebi
uma tarefa de me articular com Izolda, que também havia sido aprovada no curso,
para formarmos uma célula de esquerda na faculdade. Mantivemos os primeiros
contatos, mas, logo em seguida, (acho que com menos de 15 dias de curso), a
Izolda foi presa quando soltava uns panfletos na fábrica de confecções
Guararapes, na hora da saída das operárias. Izolda foi incursa na Lei de
Segurança Nacional e pegou 2 anos de detenção, que cumpriu na Penitenciária
João Chaves em Natal.
Fui com o Silton visitá-la algumas
vezes e esse infortúnio proporcionou um romance/namoro entre Silton e Izolda e
foi lá que conheci a Eró, irmã de criação da Izolda, com quem me casei em 1975 e
vivo até hoje. A possibilidade de ter
conhecido essas pessoas (Silton, Izolda, Eró) foi a grande dádiva que o projeto
ingênuo, mas generoso, da esquerda me presenteou e me moldou como ser humano
(também ingênuo mas, da mesma forma, generoso).
Ainda através do Silton, conheci Paulo Pontes, que esteve na minha casa
participando de uma discussão com uma freira (não lembro mais o nome) no nosso clube de jovens da Cohabinal. Depois
da reunião com a irmã, fizemos uma discussão política, na qual, o Paulo Pontes
disse que a alternativa no Brasil era “partir para luta armada”.
Eles partiram (Silton e Paulo) e
pagaram caro por essa opção. Silton, com a vida, tirada da forma mais
ignominiosa – a tortura, em 1972.** Paulo Pontes foi preso na Bahia, junto com
Teodomiro dos Santos, mas ambos sobreviveram a tortura (sabe Deus com quais
seqüelas). Tempos depois, em 1983, quando já morava no Acre, casado e com dois
filhos (Ana e Abelardo) fui fazer um curso sobre Desenvolvimento Rural em
Salvador e me reencontrei, nesse curso, com o Paulo Pontes. Ele havia feito o
curso de Economia, que iniciou quando ainda estava preso. Depois de anistiado,
concluiu o curso e trabalhava na CAR-BA. Reencontrei-o, bem mais velho e calvo,
porém, vivo.
Silton, foi para a clandestinidade e morreu por seus
ideais. Izolda, depois de cumprir sua
pena, se auto-exilou no Peru e por lá casou e teve dois filhos, Jussara e
Ernesto, ambos já formados, trabalhando e com filhos. Eu, que pretendia também
entrar para a clandestinidade, fui preso em função de uma carta que havia
enviado para Silton falando dessa minha pretensão. Na ocasião, o Silton já havia sido assassinado e a
carta foi interceptada. Na noite de 10
de abril de 1973, ao retornar da Faculdade, quando estava chegando em casa, um
jipe com dois policiais civis do DOPS, me levaram preso e me deixaram numa
delegacia da Cidade da Esperança e depois fui para um depoimento no QG do
Exército (hoje Museu Câmara Cascudo) e depois fui levado para a Polícia
Federal.
Amarguei alguns dias na Polícia
Federal, onde, logo que cheguei, levei uns sopapos de um policial, que chamavam
de “Chinoca”. Depois me encapusaram e
algemaram e colocaram no piso do banco traseiro de uma Veraneio, com dois
agentes com os pés no meu peito e me levaram para um local que desconheço. Nesse local
passei por uma sessão de tortura, que se restringiu a telefones nos ouvidos,
chutes e pancadas por todo o corpo, por algumas horas, além da tortura
psicológica com ameaças de morte, de me enviarem para o Doi-Codi do Recife (ali
eu ia ver o que era bom, diziam. Fiquei traumatizado só de ouvir a palavra
RECIFE). Quando retornaram comigo para a Polícia Federal, já era noite. Estava
arquejando com o corpo todo dolorido e o ouvido sangrava. Na ocasião um agente
da PF foi comprar uma cerveja preta e me deu prá tomar. Foi um regalo. Esse
agente me deu um conselho, que depois se tornou profético. Ele disse: “se eu
fosse você quando saísse daqui, se sair, iria para o Acre”. Fiquei alguns dias
na PF algemado a uma cama de campanha e incomunicável. Apenas recebi a “visita” do tenente Albernáz
do serviço de informação da Aeronáutica, que voltou a me fazer ameaças e falar
mal dos comunistas, inclusive citando Prestes.
Depois de prestar vários
depoimentos, fui processado pela Lei de Segurança Nacional e transferido para a
Colônia Penal João Chaves. Nunca fiquei tão feliz em ir para um estabelecimento
penal. O meu receio e o meu pavor, era
que me levassem para o Dói-Codi do Recife, como viviam me ameaçando, pois já
tinha clareza de como funcionava os porões da ditadura.
Saí da prisão em 26 de junho de
1972. A 7ª Circunscrição da Justiça Militar em Recife, havia arquivado o meu
processo e expediu meu alvará de soltura. Fiquei livre, mas, continuei
perseguido por muito tempo. Toda vez que chegava um Presidente de plantão da
ditadura em Natal, todos os fichados pelos órgãos de informações eram recolhidos
no DOPS até a saída do Presidente. Fui vetado para um trabalho no IBGE no RN e
aqui no Acre na UFAC, onde tempos depois entrei por concurso.
A vida seguiu. Casei em 75, me formei em 77 e vim
para o Acre em 78 (a profecia do agente da PF se cumpriu). Aqui formei meus
filhos estabeleci com minha esposa sólidas amizades, estabeleci boas relações e
cheguei até, a ser autoridade (Secretário de Estado), graças ao projeto
generoso da esquerda e do PT. E daqui só saio para a viagem grande. Mas, como disse Millôr Fernandes: “É meu conforto – Da vida só me tiram
morto”.
*Marcos Inácio
Fernandes, é professor aposentado da UFAC e militante do PT
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