segunda-feira, 24 de março de 2014

COANDO AS MEMÓRIA - MINHAS LEMBRANÇAS DO GOLPE DE 64



Coando as Memórias
(Minhas lembranças do golpe de 64)
*Marcos Inácio Fernandes
 “Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural.
Pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar.”
(Nada É Impossível de Mudar – Bertolt Brechet)

Nesse ano da graça de 2014, muitas manifestações para rememorar o golpe político-militar de 1964, que completa 50 anos e, que por 21 anos, infelicitou o país, constituindo o período mais longo de uma ditadura no Brasil. As vivandeiras do golpe até promoveram uma nova “Marcha da Família com Deus” como em 64 e Bolsonaro protocolou, na Câmara dos Deputados, um pedido de uma sessão solene para rememorar e comemorar os 50 Anos da “Revolução” de março de 64. Como diria Marx,é a história se repetindo como farsa.
Com tantas manifestações acontecendo, algumas até extravagantes, como as que pedem o retorno dos militares, eu me atrevo a relatar e compartilhar a minha experiência com o golpe, que me alcançou no esplendor dos meus 16 anos, quando cursava o último ano do Ginásio (4ª série) no Ginásio Augusto Severo em Parnamirim-RN e não fazia a, mínima idéia, do que estava se desenrolando no país.
É necessário, entretanto, que retrocedamos um pouco no tempo para entender o que se passou em 64, embora esse texto não tenha nenhuma pretensão histórica, mas apenas de descrever as lembranças pessoais, as vivências, que a minha memória reteve, antes, durante e depois do golpe.
Remonto à 10 anos atrás. Em 1954, morava na ilha de Fernando Noronha, onde meu avô materno trabalhava como Diarista de Obra no destacamento da FAB (Força Aérea Brasileira) e meu pai, que era militar da Aeronáutica, serviu por alguns anos no pós-guerra. Naquele fatídico 24 de agosto, fui para a escola do Território (já estudava no 1º ano, apesar da minha tenra idade de 6 anos) e antes de entrarmos para as salas, formávamos no pátio e algum aluno hasteava a bandeira ao som do Hino Nacional executado em disco e cantado pelos alunos. Naquele dia não houve formatura e a bandeira já estava hasteada a meio pau, quando a diretora nos avisou, compungida, que não haveria aula em face da morte do Presidente Vargas. De volta a minha casa, o que me chamou atenção, foi a expressão comovida de meu avô ao pé do rádio ouvindo os boletins noticiosos do Repórter Esso (A Testemunha Ocular da História), que a todo instante entrava no ar. Aquela vinheta do Repórter Esso, até hoje, não me sai da cabeça. Com um tiro no seu próprio peito, Vargas “deixava a vida para entrar na história” e adiava o golpe em 10 anos.
Alguns anos depois houve outra tentativa de golpe, quando Jânio Quadros renunciou em 1961, e os militares tentaram impedir a posse do Vice-Presidente eleito, João Goulart. (Naquela época se votava, nominalmente, para vice - Presidente, tanto que Jango, que era da chapa do PTB/PDS, se elegeu com Jânio, que era da UDN. Foi a famosa dobradinha “Jan-Jan”). O que eu me lembro dessa época, foi que o então comandante da Base Aérea de Natal, coronel Burnier, que era um militar linha dura e com pendores golpistas, ( já havia participado do levante da Aeronáutica contra o governo de Juscelino em Aragarças em 1959), colocou todos os militares da Base de prontidão, que durou vários dias. Meu pai, que ainda estava na ativa, ficou muitos dias sem vir em casa. Burnier, que chegou a Brigadeiro, anos depois, seria protagonista de episódios dos mais infames do regime militar. Sob o seu comando no quartel da 3ª Zona Aérea no Rio de Janeiro, ocorreu a prisão e desaparecimento do ex – deputado, Rubens Paiva, a prisão e assassinato de Stuart Angel, ambos em 1971, e o rumoroso caso, de tentar usar a tropa de elite da Aeronáutica, o PARASAR, para cometer atentados terroristas no Gasômetro do Rio e seqüestrar opositores do regime para jogar no mar. Esse tresloucado ato só não se concretizou graças a reação do capitão do PARASAR, Sérgio Miranda de Carvalho ( o Sérgio Macaco), que não só descumpriu a ordem extravagante, como a denunciou a seu superiores, inclusive, ao Brigadeiro Eduardo Gomes. Em carta encaminhada ao Presidente Ernesto Geisel, relatando o fato, Eduardo Gomes, se referiu a Burnier como um “insano mental, inspirado por instintos perversos e sanguinários”.
Em 1964, o que ficou na memória dos primeiros dias do golpe foi o posicionamento de tropas do Exército em pontos estratégicos da cidade de Natal, durante os primeiros dias de abril. Lembro que quando fui assistir a um filme no cine Rio Grande, tinha uns sacos de areia e soldados com metralhadora perto do cinema. Não me recordo o filme que vi naquele dia, mas lembro que no jornal (me parece que o Canal 100), que antecedia o filme, mostrou o grande comício do dia 13 de março na Central do Brasil, onde Jango anunciou as Reformas de Base e ouriçou os golpistas. O golpe já havia acontecido e iria mergulhar o Brasil na sua ditadura mais prolongada e sanguinária. Naquela época eu não fazia a mínima idéia do que estava se passando e seguia, sem maiores preocupações, para a conclusão do ginásio.


O contexto do ano de 1964.
 Em 64, o Santos, com Pelé e companhia, sagrava-se bi-campeão Paulista vencendo a Portuguesa. No Rio, foi o Fluminense, que derrotou na final, o Bangu por 3X1. Na música, Baden Powell e Vinicius de Moraes, compunham Berimbau, dando início aos Afro Sambas e a uma das maiores parcerias da MPB. Silas de Oliveira compunha o samba enredo do Império Serrano, “Aquarela Brasileira”; Zé Keti, compunha, “Diz Que Fui Por Aí” e Nelson Cavaquinho, a sua antológica “Luz Negra”. Já no cancioneiro internacional, o sucesso do ano foi La Bamba e o bolero Encadenados (Acorrentados), que Lucho Gatica interpretava e que talvez profetizasse a situação em que mergulharia o Cone Sul (Brasil, Uruguai, Chile e Argentina) nas ditaduras mais sanguinárias – “um mundo de delírios” – como dizia o bolero.
Na cinematografia nacional, Glauber Rocha produzia o seu “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, que se tornaria o marco do Cinema Novo e Ruy Guerra produzia “Os Fuzis”. Internacionalmente, era lançado o 2º ou 3º filme da série 007, o antológico “007 Contra Goldfinger”, que imortalizaria Sean Conery, com o melhor dos Bonds. Mas o filme de 1964, que é a cara do que aconteceu no Brasil, foi o Western de Sérgio Leone com Clint Eastwood, “Por Um Punhado de Dólares”. Aqui não foi só um punhado de dólares que os EEUU, investiu no golpe, foram milhões de dólares, fora as 6 malas cheias de dólares que o general Amaury Kruel, do II Exército de São Paulo, embolsou, conforme denúncia recente do Major do Exército Erimá Pinheiro Moreira, testemunha ocular do suborno milionário.
Minha experiência com a ditadura.
 No início dos 70, eu já havia concluído meu curso secundário na Escola Agro-técnica de Jundiaí em Macaíba – RN e já tinha uma certa compreensão do que estava ocorrendo no Brasil, onde o golpe dentro do golpe – o AI-5 – estava em pleno vigor . Mas a minha paixão era o futebol e jogar bola. Eu era um meio de campo que jogava até razoável (fui da seleção de Jundiaí e campeão do Interior pelo time de Parnamirim). Durante algum tempo  joguei pelo time do sítio de Japecanga,(um engenho de fogo morto) perto da minha cidade, Parnamirim. Foi nesse encontros futebolísticos, que conheci o Silton,( José Silton Pinheiro) que também jogava no time local.  
Na primeira vez, que estive em Japecanga, o que me chamou atenção foi o fato de um rapaz daquelas brenhas está assobiando músicas do Edu Lobo e Geraldo Vandré. Era o Silton. Após esse primeiro jogo, retornamos no caminhão do time de Natal e entabulamos conversa sobre as músicas que ele estava cantarolando. Informei-lhe que eu gostava da MPB e que escutava os programas de rádio de Irapuã Rocha, na Rádio Rural, e o de Rubens Lemos, na rádio Cabugi. O prefixo do programa do Rubens Lemos, dizia “Acorda samba do Brasil....”  Fiquei sabendo que ele ia fazer vestibular para Educação, que havia concluído o 2º grau no colégio Marista de Natal, que era do movimento estudantil e que havia sido criado por D. Lira, sua mãe adotiva. Na oportunidade lhe informei que também era secundarista e que estava pensando fazer Sociologia e ele, com o seu jeito expansivo e alegre, fêz a uma festa e me deu a maior força.
Desde então, ficamos amigos e freqüentávamos a casa um do outro. Continuamos a jogar no time de Japecanga. Em 1971, passamos no vestibular para as nossas áreas e a amizade evoluiu para um companheirismo partidário. Através do Silton eu pude enveredar pela trilha revolucionária que os jovens acalentam e acabei sendo “recrutado” para militar na FREP (Frente Revolucionária Popular), uma frente capitaneada pelo PCBR, no nordeste.
A minha militância “revolucionária” se restringiu a algumas leituras de textos clássicos da literatura socialista: O Manifesto Comunista, Esquerdismo: a Doença infantil do Comunismo, O Estado e a Revolução e romances do Jorge Amado: Subterrâneos da Liberdade, poesias de Brechet e Castro Alves e por aí. Através do Silton, tomei conhecimento do trabalho de Geanfrancesco Guarnieri, “Arena Canta Zumbi” e de “Liberdade, Liberdade” de Flávio Rangel e Millôr Fernandes. Esse trabalho teatral sobre a Liberdade já estava censurado, mas o Silton, ainda conseguiu comprar um LP e me presenteou. Guardo esse presente até hoje.  Agora, recentemente, já no século XXI,  consegui  esse trabalho em CD na coletânea  das duas coleções da Nara Leão, que na época participava do elenco da peça.
  As minhas ações “revolucionárias” se restringiram a duas panfletagens. Uma no cine Nordeste (jogar uns panfletos na parte de cima do cinema durante a projeção) e a outra dentro de um ônibus de linha que transportava trabalhadores nas primeiras horas da manhã de um bairro de Natal que eu não sabia qual era (tinha ido dormir no aparelho e de lá para o local da atividade, sempre de olhos vendados).
Na primeira semana de faculdade, na Fundação José Augusto, que oferecia os cursos de Sociologia e Jornalismo, recebi uma tarefa de me articular com Izolda, que também havia sido aprovada no curso, para formarmos uma célula de esquerda na faculdade. Mantivemos os primeiros contatos, mas, logo em seguida, (acho que com menos de 15 dias de curso), a Izolda foi presa quando soltava uns panfletos na fábrica de confecções Guararapes, na hora da saída das operárias. Izolda foi incursa na Lei de Segurança Nacional e pegou 2 anos de detenção, que cumpriu na Penitenciária João Chaves em Natal.
Fui com o Silton visitá-la algumas vezes e esse infortúnio proporcionou um romance/namoro entre Silton e Izolda e foi lá que conheci a Eró, irmã de criação da Izolda, com quem me casei em 1975 e vivo até hoje.  A possibilidade de ter conhecido essas pessoas (Silton, Izolda, Eró) foi a grande dádiva que o projeto ingênuo, mas generoso, da esquerda me presenteou e me moldou como ser humano (também ingênuo mas, da mesma forma, generoso).
Ainda através do Silton,  conheci Paulo Pontes, que esteve na minha casa participando de uma discussão com uma freira (não lembro mais o nome)  no nosso clube de jovens da Cohabinal. Depois da reunião com a irmã, fizemos uma discussão política, na qual, o Paulo Pontes disse que a alternativa no Brasil era “partir para luta armada”.
Eles partiram (Silton e Paulo) e pagaram caro por essa opção. Silton, com a vida, tirada da forma mais ignominiosa – a tortura, em 1972.** Paulo Pontes foi preso na Bahia, junto com Teodomiro dos Santos, mas ambos sobreviveram a tortura (sabe Deus com quais seqüelas). Tempos depois, em 1983, quando já morava no Acre, casado e com dois filhos (Ana e Abelardo) fui fazer um curso sobre Desenvolvimento Rural em Salvador e me reencontrei, nesse curso, com o Paulo Pontes. Ele havia feito o curso de Economia, que iniciou quando ainda estava preso. Depois de anistiado, concluiu o curso e trabalhava na CAR-BA. Reencontrei-o, bem mais velho e calvo, porém, vivo.
Silton,  foi para a clandestinidade e morreu por seus ideais.  Izolda, depois de cumprir sua pena, se auto-exilou no Peru e por lá casou e teve dois filhos, Jussara e Ernesto, ambos já formados, trabalhando e com filhos. Eu, que pretendia também entrar para a clandestinidade, fui preso em função de uma carta que havia enviado para Silton falando dessa minha pretensão. Na ocasião,  o Silton já havia sido assassinado e a carta  foi interceptada. Na noite de 10 de abril de 1973, ao retornar da Faculdade, quando estava chegando em casa, um jipe com dois policiais civis do DOPS, me levaram preso e me deixaram numa delegacia da Cidade da Esperança e depois fui para um depoimento no QG do Exército (hoje Museu Câmara Cascudo) e depois fui levado para a Polícia Federal.
Amarguei alguns dias na Polícia Federal, onde, logo que cheguei, levei uns sopapos de um policial, que chamavam de “Chinoca”.  Depois me encapusaram e algemaram e colocaram no piso do banco traseiro de uma Veraneio, com dois agentes com os pés no meu peito e me levaram para um local que desconheço.  Nesse local  passei por uma sessão de tortura, que se restringiu a telefones nos ouvidos, chutes e pancadas por todo o corpo, por algumas horas, além da tortura psicológica com ameaças de morte, de me enviarem para o Doi-Codi do Recife (ali eu ia ver o que era bom, diziam. Fiquei traumatizado só de ouvir a palavra RECIFE). Quando retornaram comigo para a Polícia Federal, já era noite. Estava arquejando com o corpo todo dolorido e o ouvido sangrava. Na ocasião um agente da PF foi comprar uma cerveja preta e me deu prá tomar. Foi um regalo. Esse agente me deu um conselho, que depois se tornou profético. Ele disse: “se eu fosse você quando saísse daqui, se sair, iria para o Acre”. Fiquei alguns dias na PF algemado a uma cama de campanha e incomunicável.  Apenas recebi a “visita” do tenente Albernáz do serviço de informação da Aeronáutica, que voltou a me fazer ameaças e falar mal dos comunistas, inclusive citando Prestes.
Depois de prestar vários depoimentos, fui processado pela Lei de Segurança Nacional e transferido para a Colônia Penal João Chaves. Nunca fiquei tão feliz em ir para um estabelecimento penal.  O meu receio e o meu pavor, era que me levassem para o Dói-Codi do Recife, como viviam me ameaçando, pois já tinha clareza de como funcionava os porões da ditadura.
Saí da prisão em 26 de junho de 1972. A 7ª Circunscrição da Justiça Militar em Recife, havia arquivado o meu processo e expediu meu alvará de soltura. Fiquei livre, mas, continuei perseguido por muito tempo. Toda vez que chegava um Presidente de plantão da ditadura em Natal, todos os fichados pelos órgãos de informações eram recolhidos no DOPS até a saída do Presidente. Fui vetado para um trabalho no IBGE no RN e aqui no Acre na UFAC, onde tempos depois entrei por concurso.
A vida seguiu. Casei em 75, me formei em 77 e vim para o Acre em 78 (a profecia do agente da PF se cumpriu). Aqui formei meus filhos estabeleci com minha esposa sólidas amizades, estabeleci boas relações e cheguei até, a ser autoridade (Secretário de Estado), graças ao projeto generoso da esquerda e do PT. E daqui só saio para a viagem grande. Mas,  como disse Millôr Fernandes: “É meu conforto – Da vida só me tiram morto”.   


*Marcos Inácio Fernandes, é professor aposentado da UFAC e militante do PT

** 1972 foi o ano em que a ditadura matou mais patriotas. Foram assassinadas 61 pessoas, entre as quais meu amigo e companheiro José Silton Pinheiro. Ao todo o regime militar torturou e matou 311 compatriotas.

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