Mais um artigo, sempre brilhante do Mino Carta, em Carta Capital sobre a decisão do STF (ADPF-153) anistiando os torturadores. Nos seus argumentos, alguns Ministros, ainda tiveram o desplante de citar indevidamente, segundo Mino Carta, Raymundo Faoro. Eis o texto:
Este texto é dedicado ao ministro Eros Grau e aos demais que citaram Faoro para justificar seu voto dia 29 de abril
Costumava chamar Raymundo Faoro de Profeta, com P grande mesmo. Ele fazia previsões sobre o futuro da política brasileira e antecipava os eventos. Profeta no sentido de mensageiro: é quem desnuda os fatos antes que aconteçam, por conhecer os mecanismos destinados a produzi-los. Há leis inelutáveis a reger a relação entre causa e efeito, poucos, porém, sabem delas. Pouquíssimos.
Por exemplo. Raymundo não seria colhido de surpresa pela votação do STF que na semana passada rejeitou o pedido de revisão da Lei da Anistia apresentado pela OAB. Riria soturnamente, creio eu, ao assistir à demonstração de um teo-rema. Quem sabe o surpreendesse, isto sim, ter sido citado por alguns ministros, a começar pelo relator Eros Grau.
A 29 de abril de 2010, data a ser sempre lembrada com pesar, o Supremo sufragou a validade de uma lei que pretende nascida do acordo entre a ditadura e os legítimos representantes da Nação. Ou seja, a oposição dizimada, uma sociedade civil de existência duvidosa e, de todo modo, amedrontada, sem falar de um povo aturdido e resignado. Se alguém houve para contestar a lei imposta leoninamente, e com a devida, veemente pontualidade e clareza de raciocínio, foi o Profeta.
Em entrevista publicada a 21 de fevereiro de 1979 por IstoÉ, que eu então dirigia, Raymundo dizia que a chave do entendimento da anistia prometida teria de ser buscada no discurso pronunciado por Ernesto Geisel, ao anunciar o fim do AI-5, por ser este “um impedimento ao desenvolvimento”. “Pode ser surpreendente – acrescentava –, mas é uma chave dialética, a mesma abertura que seria há tempos empecilho agora é favorecimento (...), mas a dialética de Geisel tem um limite, a nossa não tem. É uma dialética de Estado-Maior (...) a primeira marca deste sistema é que se trata, em primeiro lugar, de um sistema imposto, e comandado sempre do alto, de transformações controladas.”
E logo adiante: “Tentou-se, por intermédio da coerção, fazer-se o consenso (...) é neste contexto que entra o conceito de conciliação, conceito que, na verdade, não envolve qualquer compromisso (...) a abertura não é o processo que desejávamos (...) a anistia não pode ser restrita da maneira que se pretende”.
Em ensaio também publicado por IstoÉ, no final de junho de 79, Raymundo reforçava estes conceitos, para constatar, em abril do ano seguinte, sete meses depois da promulgação da lei, que a anistia era dolorosamente restrita. Quanto ao conceito da conciliação, ele nunca deixou de ser taxativo. Ainda nos começos de 79 ele o definia como “oligárquico e seletivo”.
Explicava: “Não envolve compromisso algum com forças dissidentes porque é um projeto constituído num grupo fechado que se alarga um pouco mais. E se alarga não só, agora, por meio da coerção ideológica, sempre encoberta, mas com outro instrumento (...) chamado cooptação, que é igualmente autoritário”.
Conciliação, coerção, cooptação. Permitem qualquer semelhança, por mais vaga, com negociação equilibrada entre oponentes? Existe algo mais lamentável, e vergonhoso, do que tentar reescrever a história ao evocar o testemunho de quem esteve do lado oposto? Recordo conversas que Mauricio Dias e eu tivemos com Raymundo na sala da casa dele, contida entre o escritório e um corredor, ambos forrados de estantes repletas de livros, alinhados em ordem, aparentemente atrabiliária, em duas fileiras, para aproveitar todo o espaço.
Os papos, contristados, davam-se logo após o parto da Lei da Anistia. À beira de alguma garrafa respeitável, para suscitar o sorriso irônico do anfitrião. Movidos pela referência aos “crimes conexos” diligentemente assinalados pelos legisladores ditatoriais, dados a metáforas hiperbólicas. Ou kafkianas?
A estranha figura dos “conexos” era a prova mais eloquente da imposição do alto, acompanhada, desde então, pela certeza (profética?) de que mais uma prepotência mesmo em tempos dito de redemocratização seria aceita por quem pode decidir, em nome da paz geral de uma Nação ainda incapaz de manifestar com nitidez, e peso determinante, a sua vontade.
É do conhecimento até do mundo mineral a extraordinária e inusitada eficácia da atuação de Raymundo na presidência da OAB. A organização ganhou com ele a importância que jamais tivera. Suas pressões, inclusive pela divulgação que ele ousou de um manifesto de 22 presos políticos do presídio de São Paulo, ou da primeira denúncia de um assassínio cometido pelo terror de Estado, aquele de Stuart Angel, acuaram a ditadura. Recorrer ao Profeta para justificar o voto de 29 de abril é impecável exemplo de como se portam, em determinadas circunstâncias, os donos do poder.
Este texto é dedicado ao ministro Eros Grau e aos demais que citaram Faoro para justificar seu voto dia 29 de abril
Costumava chamar Raymundo Faoro de Profeta, com P grande mesmo. Ele fazia previsões sobre o futuro da política brasileira e antecipava os eventos. Profeta no sentido de mensageiro: é quem desnuda os fatos antes que aconteçam, por conhecer os mecanismos destinados a produzi-los. Há leis inelutáveis a reger a relação entre causa e efeito, poucos, porém, sabem delas. Pouquíssimos.
Por exemplo. Raymundo não seria colhido de surpresa pela votação do STF que na semana passada rejeitou o pedido de revisão da Lei da Anistia apresentado pela OAB. Riria soturnamente, creio eu, ao assistir à demonstração de um teo-rema. Quem sabe o surpreendesse, isto sim, ter sido citado por alguns ministros, a começar pelo relator Eros Grau.
A 29 de abril de 2010, data a ser sempre lembrada com pesar, o Supremo sufragou a validade de uma lei que pretende nascida do acordo entre a ditadura e os legítimos representantes da Nação. Ou seja, a oposição dizimada, uma sociedade civil de existência duvidosa e, de todo modo, amedrontada, sem falar de um povo aturdido e resignado. Se alguém houve para contestar a lei imposta leoninamente, e com a devida, veemente pontualidade e clareza de raciocínio, foi o Profeta.
Em entrevista publicada a 21 de fevereiro de 1979 por IstoÉ, que eu então dirigia, Raymundo dizia que a chave do entendimento da anistia prometida teria de ser buscada no discurso pronunciado por Ernesto Geisel, ao anunciar o fim do AI-5, por ser este “um impedimento ao desenvolvimento”. “Pode ser surpreendente – acrescentava –, mas é uma chave dialética, a mesma abertura que seria há tempos empecilho agora é favorecimento (...), mas a dialética de Geisel tem um limite, a nossa não tem. É uma dialética de Estado-Maior (...) a primeira marca deste sistema é que se trata, em primeiro lugar, de um sistema imposto, e comandado sempre do alto, de transformações controladas.”
E logo adiante: “Tentou-se, por intermédio da coerção, fazer-se o consenso (...) é neste contexto que entra o conceito de conciliação, conceito que, na verdade, não envolve qualquer compromisso (...) a abertura não é o processo que desejávamos (...) a anistia não pode ser restrita da maneira que se pretende”.
Em ensaio também publicado por IstoÉ, no final de junho de 79, Raymundo reforçava estes conceitos, para constatar, em abril do ano seguinte, sete meses depois da promulgação da lei, que a anistia era dolorosamente restrita. Quanto ao conceito da conciliação, ele nunca deixou de ser taxativo. Ainda nos começos de 79 ele o definia como “oligárquico e seletivo”.
Explicava: “Não envolve compromisso algum com forças dissidentes porque é um projeto constituído num grupo fechado que se alarga um pouco mais. E se alarga não só, agora, por meio da coerção ideológica, sempre encoberta, mas com outro instrumento (...) chamado cooptação, que é igualmente autoritário”.
Conciliação, coerção, cooptação. Permitem qualquer semelhança, por mais vaga, com negociação equilibrada entre oponentes? Existe algo mais lamentável, e vergonhoso, do que tentar reescrever a história ao evocar o testemunho de quem esteve do lado oposto? Recordo conversas que Mauricio Dias e eu tivemos com Raymundo na sala da casa dele, contida entre o escritório e um corredor, ambos forrados de estantes repletas de livros, alinhados em ordem, aparentemente atrabiliária, em duas fileiras, para aproveitar todo o espaço.
Os papos, contristados, davam-se logo após o parto da Lei da Anistia. À beira de alguma garrafa respeitável, para suscitar o sorriso irônico do anfitrião. Movidos pela referência aos “crimes conexos” diligentemente assinalados pelos legisladores ditatoriais, dados a metáforas hiperbólicas. Ou kafkianas?
A estranha figura dos “conexos” era a prova mais eloquente da imposição do alto, acompanhada, desde então, pela certeza (profética?) de que mais uma prepotência mesmo em tempos dito de redemocratização seria aceita por quem pode decidir, em nome da paz geral de uma Nação ainda incapaz de manifestar com nitidez, e peso determinante, a sua vontade.
É do conhecimento até do mundo mineral a extraordinária e inusitada eficácia da atuação de Raymundo na presidência da OAB. A organização ganhou com ele a importância que jamais tivera. Suas pressões, inclusive pela divulgação que ele ousou de um manifesto de 22 presos políticos do presídio de São Paulo, ou da primeira denúncia de um assassínio cometido pelo terror de Estado, aquele de Stuart Angel, acuaram a ditadura. Recorrer ao Profeta para justificar o voto de 29 de abril é impecável exemplo de como se portam, em determinadas circunstâncias, os donos do poder.
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