Pinçado do IG. (MIF)
Quando Noel Rosa nasceu, há cem anos (em 11 de dezembro de 1910), o samba ainda não era instituição brasileira – e carioca – por excelência. À época, a indústria fonográfica, ainda em seus primeiros passos, tinha o hábito de colocar nos rótulos dos discos o nome do ritmo de cada música, e só em 1917 o termo “samba” apareceria inscrito pela primeira vez num rótulo de disco. "Pelo Telefone", composto por Donga e Mauro de Almeida e interpretado por Baiano, entraria para a história como o primeiro fonograma oficialmente classificado como “samba”.
Durante a infância de Noel, o gênero vinha se construindo nas reuniões festivas nas casas operárias das “tias” baianas, em especial no bairro da Cidade Nova, erguido numa antiga região alagadiça na confluência entre o centro e a zona norte da cidade. Sinhô e Pixinguinha eram nomes cruciais daquela movimentação regada a piano, flauta, clarineta, cordas e metais. A música que faziam (e que hoje chamamos de samba) trazia fortes características de ritmos anteriores como maxixe e lundu.
Contíguo à Cidade Nova ficava o bairro de Estácio de Sá, também proletário, situado entre Rio Comprido, Catumbi, morro de São Carlos e a zona do mangue (e do meretrício). Nesse outro ambiente se desenvolvia, ao longo da década de 1920, uma nova modalidade musical - aquela que seduziria o adolescente de classe média baixa nascido não na Cidade Nova nem no Estácio, mas na Vila Isabel.
No Estácio, homens negros e, portanto, identificados com o estigma e o estereótipo da “malandragem”, como Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Baiaco e Brancura, forjavam o futuro, erguido sob a égide da pobreza. Ali não havia o luxo dos pianos e metais, e a batucada acontecia em instrumentos manufaturados, a maioria deles de percussão: tamborim, surdo, cuíca, pandeiro. No Estácio, nasceria em 1928 o bloco carnavalesco Deixa Falar, muitas vezes referido como a primeira escola de samba de que se tem notícia (o atual Sambódromo, a propósito, se localiza na Cidade Nova, perto do Estácio).
Foto: Reprodução
Noel Rosa compôs um punhado assombroso de sambas históricos até hoje lembrados e cantados
Noel era branco como a neve, tinha uma pronunciada deformação no maxilar decorrente de um parto acidentado, e tentava se adaptar ao sonho da família, de que se tornasse médico. Atraía-se, no entanto, por estilos de vida menos obedientes e mais transgressores, e preferiu desde cedo o refúgio do Estácio e de localidades pelas quais aquela nova modalidade musical se espalhava, como os morros da Mangueira (de onde vinha Cartola, seu futuro parceiro) e do Salgueiro. Lançado em disco quando Noel tinha 19 anos, seu primeiro sucesso, "Com Que Roupa?" (1930), colaborava para amplificar o alcance inicialmente restrito do “samba do Estácio”.
Os “almofadinhas” Francisco Alves e Mário Reis, dois dos mais importantes cantores de então, logo se deram conta da batida percussiva contagiante das criações de Ismael & companhia, que se tornaram fornecedores cruciais para seus repertórios. "Gosto, mas Não É Muito" (1931), "Para Me Livrar do Mal" (1932) e "A Razão Dá-Se a Quem Tem" (1932) foram alguns dos sambas de modelo novo que a dupla Noel & Ismael entregou para o sucesso radiofônico pelas cordas vocais de Francisco Alves (que, por sinal, comprou parceria de Ismael em vários sambas dos quais não havia composto uma linha sequer).
"Com Que Roupa?" conquistou um público ainda em formação, seduzindo-o numa trama engenhosa conduzida por um narrador proletário que não possui vestes adequadas para se jogar às festas da sociedade da capital da República. E delimitou modificações não apenas musicais, mas também socioeconômicas – a crítica social gaiata de Noel espelhava um país em plena transformação, com a chegada a presidência de Getúlio Vargas. Deliberadamente, Noel compôs o primeiro verso do samba (“agora vou mudar minha conduta”) usando as mesmíssimas notas do “ouviram do Ipiranga as margens plácidas” do Hino Nacional Brasileiro. “Eu vou pra luta/ pois eu quero me aprumar”, prosseguia noutra direção o sambinha de Noel, tão ambíguo quanto o próprio Brasil.
Noel ascendeu com Getúlio e compôs um punhado assombroso de sambas históricos, até hoje lembrados e cantados, e sempre dispostos num meio termo entre o irônico e o amoroso, o político e o romântico: "Gago Apaixonado" (1931), "Coisas Nossas" (1932), "Positivismo" (1933), "Conversa de Botequim" (1935)… A voz da cantora Aracy de Almeida, jovem, arrojada, proletária e suburbana (do Encantado), definiu o sucesso de "Palpite Infeliz" (1935), "Triste Cuíca" (1935), "O X do Problema" (1936), "O Século do Progresso" (1937), "Último Desejo" (1937).
Como deixam entrever as dolorosíssimas letras criadas de 1935 em diante, a essa altura Noel já se consumia por dentro do mal (romântico) do século passado, a tuberculose. Morreu em 1937, aos 26 anos, ao mesmo tempo em que o ditador Getúlio instalava no Brasil o Estado Novo. “A gíria que o nosso morro criou/ bem cedo a cidade aceitou e usou/ mais tarde o malandro deixou/ de sambar dando pinote/ e só querendo dançar fox-trote”, ele ironizava tristemente em 1933, no samba "Não Tem Tradução". Não esperou para assistir à Segunda Guerra Mundial e à política de alinhamento do Brasil com os Estados Unidos, que pregaria uma “boa vizinhança” hollywoodiana e propagandearia o samba como marca brasileira distintiva perante o mundo.
“Amor lá no morro é amor pra chuchu/ as rimas do samba não são ‘I love you’/ e esse negócio de alô, ‘alô, boy’, ‘alô, Johnny’/ só pode ser conversa de telefone”, concluía o samba de Noel, lançado em 1933 por Francisco Alves – que, seis anos depois, estaria divulgando o paraíso idílico de "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, em compasso ufanista de samba-exaltação. Noel não esperou para ver essa e, menos ainda, as incontáveis outras direções pelas quais se espraiariam o samba e a música brasileira. Mas nenhuma dessas direções teria se consumado se, antes, o garoto branco de Vila Isabel não tivesse se jogado à farra com os homens negros do Estácio de Sá.
Quando Noel Rosa nasceu, há cem anos (em 11 de dezembro de 1910), o samba ainda não era instituição brasileira – e carioca – por excelência. À época, a indústria fonográfica, ainda em seus primeiros passos, tinha o hábito de colocar nos rótulos dos discos o nome do ritmo de cada música, e só em 1917 o termo “samba” apareceria inscrito pela primeira vez num rótulo de disco. "Pelo Telefone", composto por Donga e Mauro de Almeida e interpretado por Baiano, entraria para a história como o primeiro fonograma oficialmente classificado como “samba”.
Durante a infância de Noel, o gênero vinha se construindo nas reuniões festivas nas casas operárias das “tias” baianas, em especial no bairro da Cidade Nova, erguido numa antiga região alagadiça na confluência entre o centro e a zona norte da cidade. Sinhô e Pixinguinha eram nomes cruciais daquela movimentação regada a piano, flauta, clarineta, cordas e metais. A música que faziam (e que hoje chamamos de samba) trazia fortes características de ritmos anteriores como maxixe e lundu.
Contíguo à Cidade Nova ficava o bairro de Estácio de Sá, também proletário, situado entre Rio Comprido, Catumbi, morro de São Carlos e a zona do mangue (e do meretrício). Nesse outro ambiente se desenvolvia, ao longo da década de 1920, uma nova modalidade musical - aquela que seduziria o adolescente de classe média baixa nascido não na Cidade Nova nem no Estácio, mas na Vila Isabel.
No Estácio, homens negros e, portanto, identificados com o estigma e o estereótipo da “malandragem”, como Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Baiaco e Brancura, forjavam o futuro, erguido sob a égide da pobreza. Ali não havia o luxo dos pianos e metais, e a batucada acontecia em instrumentos manufaturados, a maioria deles de percussão: tamborim, surdo, cuíca, pandeiro. No Estácio, nasceria em 1928 o bloco carnavalesco Deixa Falar, muitas vezes referido como a primeira escola de samba de que se tem notícia (o atual Sambódromo, a propósito, se localiza na Cidade Nova, perto do Estácio).
Foto: Reprodução
Noel Rosa compôs um punhado assombroso de sambas históricos até hoje lembrados e cantados
Noel era branco como a neve, tinha uma pronunciada deformação no maxilar decorrente de um parto acidentado, e tentava se adaptar ao sonho da família, de que se tornasse médico. Atraía-se, no entanto, por estilos de vida menos obedientes e mais transgressores, e preferiu desde cedo o refúgio do Estácio e de localidades pelas quais aquela nova modalidade musical se espalhava, como os morros da Mangueira (de onde vinha Cartola, seu futuro parceiro) e do Salgueiro. Lançado em disco quando Noel tinha 19 anos, seu primeiro sucesso, "Com Que Roupa?" (1930), colaborava para amplificar o alcance inicialmente restrito do “samba do Estácio”.
Os “almofadinhas” Francisco Alves e Mário Reis, dois dos mais importantes cantores de então, logo se deram conta da batida percussiva contagiante das criações de Ismael & companhia, que se tornaram fornecedores cruciais para seus repertórios. "Gosto, mas Não É Muito" (1931), "Para Me Livrar do Mal" (1932) e "A Razão Dá-Se a Quem Tem" (1932) foram alguns dos sambas de modelo novo que a dupla Noel & Ismael entregou para o sucesso radiofônico pelas cordas vocais de Francisco Alves (que, por sinal, comprou parceria de Ismael em vários sambas dos quais não havia composto uma linha sequer).
"Com Que Roupa?" conquistou um público ainda em formação, seduzindo-o numa trama engenhosa conduzida por um narrador proletário que não possui vestes adequadas para se jogar às festas da sociedade da capital da República. E delimitou modificações não apenas musicais, mas também socioeconômicas – a crítica social gaiata de Noel espelhava um país em plena transformação, com a chegada a presidência de Getúlio Vargas. Deliberadamente, Noel compôs o primeiro verso do samba (“agora vou mudar minha conduta”) usando as mesmíssimas notas do “ouviram do Ipiranga as margens plácidas” do Hino Nacional Brasileiro. “Eu vou pra luta/ pois eu quero me aprumar”, prosseguia noutra direção o sambinha de Noel, tão ambíguo quanto o próprio Brasil.
Noel ascendeu com Getúlio e compôs um punhado assombroso de sambas históricos, até hoje lembrados e cantados, e sempre dispostos num meio termo entre o irônico e o amoroso, o político e o romântico: "Gago Apaixonado" (1931), "Coisas Nossas" (1932), "Positivismo" (1933), "Conversa de Botequim" (1935)… A voz da cantora Aracy de Almeida, jovem, arrojada, proletária e suburbana (do Encantado), definiu o sucesso de "Palpite Infeliz" (1935), "Triste Cuíca" (1935), "O X do Problema" (1936), "O Século do Progresso" (1937), "Último Desejo" (1937).
Como deixam entrever as dolorosíssimas letras criadas de 1935 em diante, a essa altura Noel já se consumia por dentro do mal (romântico) do século passado, a tuberculose. Morreu em 1937, aos 26 anos, ao mesmo tempo em que o ditador Getúlio instalava no Brasil o Estado Novo. “A gíria que o nosso morro criou/ bem cedo a cidade aceitou e usou/ mais tarde o malandro deixou/ de sambar dando pinote/ e só querendo dançar fox-trote”, ele ironizava tristemente em 1933, no samba "Não Tem Tradução". Não esperou para assistir à Segunda Guerra Mundial e à política de alinhamento do Brasil com os Estados Unidos, que pregaria uma “boa vizinhança” hollywoodiana e propagandearia o samba como marca brasileira distintiva perante o mundo.
“Amor lá no morro é amor pra chuchu/ as rimas do samba não são ‘I love you’/ e esse negócio de alô, ‘alô, boy’, ‘alô, Johnny’/ só pode ser conversa de telefone”, concluía o samba de Noel, lançado em 1933 por Francisco Alves – que, seis anos depois, estaria divulgando o paraíso idílico de "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, em compasso ufanista de samba-exaltação. Noel não esperou para ver essa e, menos ainda, as incontáveis outras direções pelas quais se espraiariam o samba e a música brasileira. Mas nenhuma dessas direções teria se consumado se, antes, o garoto branco de Vila Isabel não tivesse se jogado à farra com os homens negros do Estácio de Sá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário