domingo, 12 de dezembro de 2010

CASARÃO, TOMBADO E REVITALIZADO


Pinçado do Blog do Altino Machado. Uma bela crônica de Leila Jalul sobre o Casarão e seus personagens. O Casarão era o reduto etílico/cultural da esquerda acreana nos anos 80 e 90. estive lá, muitas vezes. (MIF)


ADOREI TER VIVIDO
Leila Jalul

Prezado Altino,

Desse Casarão aí, ainda bem, fico sem saudades. Entanto, com sinceridade, desejo que não tenha o mesmo fim do Bar Municipal e do Café do Theatro, que estão a mais ou menos 100 metros. Será uma lástima se vier a acontecer.


Responda-me uma coisa: teria o Abrahim Farhat tomado um chá de champignons? Ou Viagra vencido? Rapaz, o cabra tava doidão! Quase ou mais que o Pia Vila. Esse Brachula não tem mais idade para essas emoções. Fiquei apreensiva, acredite.


A revitalização é um belo gesto do governador Binho Marques. Devo-lhe desculpas pelo comentário sobre as casinhas populares. Meu pensamento é aquele mesmo. O comentário é que chegou numa hora bem difícil para sua pessoa. Coisas da vida.


Voltando ao Casarão, fiquei deveras emocionada com a homenagem prestada ao Chico Pop. Esse menino era um visionário, um lutador e um bom amigo de muita gente boa. Ainda assim, teve dificuldades para ser levado a sério. Coisas da vida. E da época.


Amei ter visto os amiguinhos Elson Martins e Marcos Afonso. Os dois ficaram bem na fita. Não somente eles: o menino Jorge Viana, serelepe como nunca o havia visto, foi um espetáculo à parte. O cara é danado demais da conta. Acho que até agora deve estar com dor na lombar e coceiras na garganta, de tanto que dançou e cantou. Viva Jorge! Nasceu para brilhar. Muitos que estavam ali, por mais que se esforcem, não brilharão jamais. Não são estrelas, apenas coadjuvantes.


Por um minuto, parei de escrever para voltar no tempo. Voltei ao Casarão do coronel Fontenele de Castro. Ele estava lá, refestelado em sua cadeira de balanço de vime. Cadeira personalizada, diga-se. Quase um trono, saliente-se. Conversava com seu ajudante de ordens, cujo nome não lembro e com o Waldemar Maciel. O assunto era o de sempre: fuxicos e boatos políticos. Estavam sérios.


Cheguei numa hora imprópria e fui para a cozinha ter com a dona Guiomar. O coronel Fontenele vestia farda, mas, mandar de verdade, era privativo de dona Guiomar. Não sei se coronel de Guarda Territorial tinha estrelas. Se tivesse, vamos dizer que cinco, dona Guiomar tinha dez. Por baixo.


Guiomar era mulher forte, de cabelos na venta e moral de aço. Sua palavra era lei. Que o digam o Chico e o Fontenelinho Gato, seus filhos vivos e que moram no Acre. E a Cezarinete, que mora no Rio, creio. Aquela senhora, de fala áspera, tinha sobejas razões de vestir armaduras. Viver no Acre era difícil e as funções do marido obrigavam-na a ser assim. Na essência, na pura essência, era uma Maria-Mole, de coração derretido e sentimentos puros.


Minhas confabulações com dona Guiomar iam além do tomado de conta da piscina, então utilizada pelas crianças da rua. No dinheiro da época, uma hora de uso equivaleria, hoje, a R$ 1,00. Seus filhos haviam crescido e não mais faziam loucuras com os primos e amigos. E foram muitas as loucuras.


Gilberto Castro, sobrinho do coronel, não raras vezes pulava de um grande pé de manga fazendo de paraquedas um guardachuvas todo picotado. Gilberto virou homem e tornou-se militar da Aeronáutica, servindo na Esquadrilha da Fumaça e em caças, acho.


A piscina onde habitaram o Jack Fontenele e sua namorada Clara Crocodilo foi palco de muitas tiradas de sarro entre meninos e meninas da sociedade. Para não ficar perdida, minhas afinidades com dona Guiomar ficaram mais fortes por conta de uma tia de minha mãe, moradora da mesma rua, hoje Avenida Brasil.


A maldita, também mulher de militar, vivia a encrencar com minha amigona, aparentemente por motivos políticos. Nada disso. Acho que ela queria mesmo era "coisar" com o coronel. Não só acho. Mais que acho. E ficou assim. O coronel não dava margens a prevaricações. Homem sério não joga honra no lixo. Assim ensinou aos seus filhos, quando dizia: "Se engravidarem uma mulher, seja pobre, seja rica, negra, branca, saudável ou aleijada, tem que assumir". Tudo ratificado pela matrona.


Morto o coronel, lembrei, nunca havia visto tanta comoção. No velório e no enterro. Fiquei encarregada de encomendar missa de sétimo dia. Minha casa ficava no caminho da catedral. A missa foi outro momento de consternação. O homem era querido, quase venerado.


Na revitalização, percebi, eliminaram a sala de visitas da casa, onde ficou o corpo. O espaço ficou mais livre para os eventos. Enquanto for point, evidentemente. Bem, isso passou. Poderiam ser tão somente velhos retratos na parede. Apenas.


Do Casarão do tempo do Pedro Vicente, lembro da Livraria e Café da Silene. Um ideia das boas, enquanto durou. Do Casarão de qualquer que fosse o tempo, lembrei do Lhé. Ao dançarmos uma parte, fui por ele avisada que tinha piolhos na barba. Quase morri.


Do ultimo Casarão, do tempo do Walter e da Graça, estanquei na lembrança do sambista João Nogueira, já quase em fase terminal. Estávamos os dois, frente à frente, pouco antes do meio dia. Pedi uma cerveja. A dele estava no fim. Bebemos mais duas e, sem uma única palavra, ele chorou. Eu também. Ele me disse: "É". Eu lhe respondi: "É".


Nunca mais voltei ao Casarão. O do tempo do Coronel, o do Jack Fontenele e da Clara Crocodilo, o da Graça e do Walter e o do João Nogueira, não são motivos de saudades. Adorei ter vivido. Não são apenas retratos amarelecidos. São imagens vivas penduradas no coração.


Muito agradecida ao camarada Binho. Valeu.


Leila Jalul é cronista acreana

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