Do Blog ANIMOT
O CLITÓRIS E A NEGAÇÃO DO DESEJO FEMININO
Promiscuities: The Secret Struggle for Womanhood (Promiscuidades: A Luta Secreta pela Femininidade, 1997), de Naomi Wolf, livro que não é tão influente quanto sua maior contribuição, o indispensável O Mito da Beleza. Mas é bom também. Há uma parte fascinante em que Naomi fala sobre a mudança de padrão na sexualidade, tanto feminina quanto masculina. Esses clichês que ainda ouvimos de que o homem tem uma sexualidade irrefreável, incontrolável, e sente muito mais desejo que a mulher, que é sempre passiva, são uma invenção bastante recente. E também é mentira que foi a revolução sexual no final dos anos 1960 que revelou a existência do clitóris. O pessoal já sabia desse órgãozinho que serve apenas para o prazer (homens não têm um instrumento só para o seu prazer) já em 1559. Foi Colombo que descobriu o clitóris, só que não o mesmo Colombo que fez aquela outra descoberta importante. Esse do clitóris era um cientista italiano chamado Renaldus Colombo. Ele comparou o clitóris ao pênis, percebendo que o órgão feminino também se levantava, ficava duro, e proporcionava prazer. Essas comparações continuaram no século 17, e em 1697 um livro de anatomia já incluía o clitóris como um órgão distinto. No século 18, tanto se falava em prazer feminino que havia a lenda que orgasmos femininos ajudavam as mulheres a engravidar. A mulher era vista como um animal tão ou mais sexual que o homem.
Porém, no final do século 18, uma nova ideologia foi imposta, consequência, talvez, da Revolução Industrial. As mulheres passaram a ser vistas como seres angelicais, “seus desejos mais focados não no carnal mas na afeição e na domesticidade; cada vez mais, elas foram consideradas tão sexualmente diferentes dos homens que passaram a ser definidas como seu oposto” (minha tradução).
Por que isso aconteceu? Não há respostas concretas, só hipóteses. Alguns acham que, com a chegada de uma era mais democrática e secular, e do Darwinismo, deus e tradições religiosas não eram mais suficientes para explicar a hierarquia masculina. Coube à ciência, portanto, explicar (e manter) o domínio do patriarcado, criando mais e mais diferenças entre os sexos (já Linda Gordon acha que a sexualidade tornou-se ameaçadora para o capitalismo, que exigia que as pessoas olhassem para o futuro, e não esperassem gratificações imediatas).
Naomi crê numa interseção dessas hipóteses. Em 1789, com a Revolução Francesa, e em 1848, no resto da Europa, havia uma atmosfera de igualdade social. Mas as mulheres não podiam estar inclusas nessa igualdade. Um meio de mantê-las no seu lugar era controlá-las sexualmente. Pipocaram teorias “científicas” que desejo sexual era coisa de homem, e que inexistia, até biologicamente, nas mulheres. “Como resultado, as mulheres de classe média adotaram a 'pureza' sexual como sua principal virtude, apesar da explosão da prostituição”. A sexualidade feminina passou a ser patologizada. Aquele negócio da normalidade, sabe? Que “normal” era a mulher só querer transar pra engravidar, ou pra agradar seu marido, sem querer prazer algum pra ela. O padrão passou a ditar que o instinto maternal era o oposto do desejo sexual masculino. Qualquer resquício de desejo feminino era perigoso pra mulher ― podia até afetar seus órgãos reprodutivos, juravam os cientistas. Uma relação sexual “normal” era aquela que culminava no orgasmo masculino (e que fosse rápido, pra não comprometer a honra feminina).
Naomi lembra que houve outras contribuições para acabar com o desejo feminino. Mulheres de classe média usavam corsetes, que apertavam suas costelas, prendiam sua respiração, ocasionalmente danificavam seus órgãos internos, e as faziam desmaiar com frequência. Exigia-se que elas ficassem em casa, sem fazer qualquer tipo de exercício físico, o que, inclusive, pode ter tornado a experiência do parto ainda mais dolorosa. Assim como é difícil sentir desejo sexual no meio de uma dieta alimentar que nos priva de combustível para sobreviver, devia ser meio impossível sentir tesão usando um corsete. Não é irônico que a marca de lingerie Victoria's Secret (nome em homenagem à Era Vitoriana) seja quase sinônimo da nossa sexualidade atual? (irônico nada: Susan Faludi, no fabuloso Backlash, explica o sucesso da marca. Algum dia falo disso).
Em 1851 já se dizia que qualquer mulher que se deixava levar pelo desejo e perdia sua virtude era uma prostituta. As mulheres “decentes” apenas se submetiam à vontade de seus esposos. Como disse um jornal inglês: “Nos homens em geral o desejo sexual é inerente e espontâneo e pertence à condição da puberdade. No outro sexo, o desejo é dormente, se não inexistente”. Com o clitóris esquecido, ninfomania passou a ser tida como doença mental.
Apenas em 1899 um médico inglês, Henry Havelock Ellis, lembrou-se do clitóris. Ellis se encarregou de desmentir a suposta falta de desejo feminino, a ideologia vigente da Era Vitoriana. E ainda afirmou que mulheres podiam ter orgasmos múltiplos!
Daí veio Freud, em 1905, dizer que sim, mulheres tinham clitóris, e até meninas sentiam prazer. Mas que só o orgasmo vaginal era sinal de maturidade. O clitorial levava à frigidez. Em 1918 uma promotora pelos contraceptivos, Dra. Marie Carmichael Stopes, definiu a ideia de que mulheres com desejo sexual sejam depravadas como “absurdos ridículos que passam pelo nome de ciência”.
Já em 1926 um ginecologista holandês publicou um bestseller que seria o primeiro manual escrito por um homem “respeitável” para dar prazer às mulheres ― na realidade, esposas. Van de Velde acreditava que a melhor forma de se manter a fidelidade conjugal seria que os homens aprendessem as técnicas eróticas que satisfariam suas mulheres. Ele divulgou para o mundo anglo-saxão a noção do “beijo genital”, e chamou de egoísta um homem que tentasse transar com sua mulher sem que ela estivesse excitada.
Várias outras obras no século 20 (como o Relatório Hite, por exemplo) vieram se unir à mensagem que o desejo feminino existe e é importante. Mas ainda seguimos firmes na mentira que homens gostam de sexo, porque “é assim que os homens são”, e mulheres simplesmente o toleram. E que uma mulher de respeito não deve fazer sexo com quem (e quantos) bem entender, porque “homens e mulheres são diferentes”. Infelizmente, gente demais ainda crê nessas baboseiras.
O CLITÓRIS E A NEGAÇÃO DO DESEJO FEMININO
Promiscuities: The Secret Struggle for Womanhood (Promiscuidades: A Luta Secreta pela Femininidade, 1997), de Naomi Wolf, livro que não é tão influente quanto sua maior contribuição, o indispensável O Mito da Beleza. Mas é bom também. Há uma parte fascinante em que Naomi fala sobre a mudança de padrão na sexualidade, tanto feminina quanto masculina. Esses clichês que ainda ouvimos de que o homem tem uma sexualidade irrefreável, incontrolável, e sente muito mais desejo que a mulher, que é sempre passiva, são uma invenção bastante recente. E também é mentira que foi a revolução sexual no final dos anos 1960 que revelou a existência do clitóris. O pessoal já sabia desse órgãozinho que serve apenas para o prazer (homens não têm um instrumento só para o seu prazer) já em 1559. Foi Colombo que descobriu o clitóris, só que não o mesmo Colombo que fez aquela outra descoberta importante. Esse do clitóris era um cientista italiano chamado Renaldus Colombo. Ele comparou o clitóris ao pênis, percebendo que o órgão feminino também se levantava, ficava duro, e proporcionava prazer. Essas comparações continuaram no século 17, e em 1697 um livro de anatomia já incluía o clitóris como um órgão distinto. No século 18, tanto se falava em prazer feminino que havia a lenda que orgasmos femininos ajudavam as mulheres a engravidar. A mulher era vista como um animal tão ou mais sexual que o homem.
Porém, no final do século 18, uma nova ideologia foi imposta, consequência, talvez, da Revolução Industrial. As mulheres passaram a ser vistas como seres angelicais, “seus desejos mais focados não no carnal mas na afeição e na domesticidade; cada vez mais, elas foram consideradas tão sexualmente diferentes dos homens que passaram a ser definidas como seu oposto” (minha tradução).
Por que isso aconteceu? Não há respostas concretas, só hipóteses. Alguns acham que, com a chegada de uma era mais democrática e secular, e do Darwinismo, deus e tradições religiosas não eram mais suficientes para explicar a hierarquia masculina. Coube à ciência, portanto, explicar (e manter) o domínio do patriarcado, criando mais e mais diferenças entre os sexos (já Linda Gordon acha que a sexualidade tornou-se ameaçadora para o capitalismo, que exigia que as pessoas olhassem para o futuro, e não esperassem gratificações imediatas).
Naomi crê numa interseção dessas hipóteses. Em 1789, com a Revolução Francesa, e em 1848, no resto da Europa, havia uma atmosfera de igualdade social. Mas as mulheres não podiam estar inclusas nessa igualdade. Um meio de mantê-las no seu lugar era controlá-las sexualmente. Pipocaram teorias “científicas” que desejo sexual era coisa de homem, e que inexistia, até biologicamente, nas mulheres. “Como resultado, as mulheres de classe média adotaram a 'pureza' sexual como sua principal virtude, apesar da explosão da prostituição”. A sexualidade feminina passou a ser patologizada. Aquele negócio da normalidade, sabe? Que “normal” era a mulher só querer transar pra engravidar, ou pra agradar seu marido, sem querer prazer algum pra ela. O padrão passou a ditar que o instinto maternal era o oposto do desejo sexual masculino. Qualquer resquício de desejo feminino era perigoso pra mulher ― podia até afetar seus órgãos reprodutivos, juravam os cientistas. Uma relação sexual “normal” era aquela que culminava no orgasmo masculino (e que fosse rápido, pra não comprometer a honra feminina).
Naomi lembra que houve outras contribuições para acabar com o desejo feminino. Mulheres de classe média usavam corsetes, que apertavam suas costelas, prendiam sua respiração, ocasionalmente danificavam seus órgãos internos, e as faziam desmaiar com frequência. Exigia-se que elas ficassem em casa, sem fazer qualquer tipo de exercício físico, o que, inclusive, pode ter tornado a experiência do parto ainda mais dolorosa. Assim como é difícil sentir desejo sexual no meio de uma dieta alimentar que nos priva de combustível para sobreviver, devia ser meio impossível sentir tesão usando um corsete. Não é irônico que a marca de lingerie Victoria's Secret (nome em homenagem à Era Vitoriana) seja quase sinônimo da nossa sexualidade atual? (irônico nada: Susan Faludi, no fabuloso Backlash, explica o sucesso da marca. Algum dia falo disso).
Em 1851 já se dizia que qualquer mulher que se deixava levar pelo desejo e perdia sua virtude era uma prostituta. As mulheres “decentes” apenas se submetiam à vontade de seus esposos. Como disse um jornal inglês: “Nos homens em geral o desejo sexual é inerente e espontâneo e pertence à condição da puberdade. No outro sexo, o desejo é dormente, se não inexistente”. Com o clitóris esquecido, ninfomania passou a ser tida como doença mental.
Apenas em 1899 um médico inglês, Henry Havelock Ellis, lembrou-se do clitóris. Ellis se encarregou de desmentir a suposta falta de desejo feminino, a ideologia vigente da Era Vitoriana. E ainda afirmou que mulheres podiam ter orgasmos múltiplos!
Daí veio Freud, em 1905, dizer que sim, mulheres tinham clitóris, e até meninas sentiam prazer. Mas que só o orgasmo vaginal era sinal de maturidade. O clitorial levava à frigidez. Em 1918 uma promotora pelos contraceptivos, Dra. Marie Carmichael Stopes, definiu a ideia de que mulheres com desejo sexual sejam depravadas como “absurdos ridículos que passam pelo nome de ciência”.
Já em 1926 um ginecologista holandês publicou um bestseller que seria o primeiro manual escrito por um homem “respeitável” para dar prazer às mulheres ― na realidade, esposas. Van de Velde acreditava que a melhor forma de se manter a fidelidade conjugal seria que os homens aprendessem as técnicas eróticas que satisfariam suas mulheres. Ele divulgou para o mundo anglo-saxão a noção do “beijo genital”, e chamou de egoísta um homem que tentasse transar com sua mulher sem que ela estivesse excitada.
Várias outras obras no século 20 (como o Relatório Hite, por exemplo) vieram se unir à mensagem que o desejo feminino existe e é importante. Mas ainda seguimos firmes na mentira que homens gostam de sexo, porque “é assim que os homens são”, e mulheres simplesmente o toleram. E que uma mulher de respeito não deve fazer sexo com quem (e quantos) bem entender, porque “homens e mulheres são diferentes”. Infelizmente, gente demais ainda crê nessas baboseiras.
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