Recebí do meu amigo e confrade, Mário Amorim, por e-mail. Compartilho.
Tenha uma semana saudável.
Abraços
Mário Amorim
OLHAR O MUNDO E NÃO VER NADA
Isto acontece também na leitura: adquirimos o vício de não ler ou não ler direito. Disse o filósofo Nietzsche, em Além do bem e do mal, que lemos muito mal:
"Da mesma forma reduzida como o leitor hoje lê apenas algumas palavras (ou mesmo sílabas) em uma página - ele extrai de vinte palavras mais ou menos cinco ao acaso e "adivinha" nessas cinco palavras o sentido presumido delas -, de forma, igualmente reduzida, vemos hoje uma árvore exata e completa. Mesmo diante dos acontecimentos mais raros, fazemos igual: nós inventamos para nós mesmos boa parte do fato e é muito difícil sermos levados a não nos vermos como "inventores" de algum processo. Isso tudo quer dizer o seguinte: somos, radicalmente, desde sempre, acostumados à mentira. Ou, para expressar de forma virtuosa e hipócrita, ou, digamos, de forma agradável, a gente é muito mais artista do que imagina".
Vemos as palavras, mas não lemos o texto, jamais vemos uma árvore completa, "mentimos" para nós mesmos, diz o filósofo. No filme brasileiro Janela da Alma, um filme sobre o olhar, de João Jardim, é mostrado Egven Bavcar, um fotógrafo cego. Esse homem diz que as novas gerações estão perdendo a capacidade de ver. É um fato estranho numa época em que se diz que a visão é o mais utilizado de todos os sentidos. Vê-se muito, tudo é visual, há telas por toda parte, mas as pessoas não vêem, ou não vêem direito. O mesmo filósofo citado acima comenta também sobre um antigo padre confessor que havia ficado surdo e disse, certa vez, que a gente tem os olhos para ouvir. Dizia ele: em terra de cego, que tem ouvido mais apurado é rei.
Os estudiosos da percepção falam que a visão proporciona aos homens o "espetáculo do mundo", mas sentir o mundo é diferente. Quando sentimos o mundo, nós não apenas vemos, nós aprendemos as qualidades. Quando passamos pelas ruas, um mundo de apelos visuais, de imagens, de fotografias, de cores e de cenas nos chamam a atenção. Nós saímos de nós e dirigimos ao painel publicitário, ao telão, à publicidade nas ruas. Nós vamos para lá. É diferente quando fazemos o movimento inverso, quando deixamos o mundo entrar em nós, e isso não acontece com a visão,mas acontece com a audição, com o tato e com todas as formas de sentir as coisas. Elas entram em nós, instalam-se em nós, produzem em nosso interior uma sensação de incorporação e de mudança.
A visão, falamos acima, é forma de captura, de aprisionamento, é uma maneira de apanhar uma vítima, uma presa. Há certos olhares que são ferinos, que atacam, que chispam, que agridem. Mas não há jamais um ouvir ferino, um sentir ferino. Porque sentir é perceber as coisas instalarem-se em nós, é aprender com elas, é nos desenvolvermos por meio delas, é nos tornarmos mais refinados, atentos, solidários com base no que a natureza e o mundo externo podem nos ensinar. Isso é diferente também da forma como trabalha o olhar científico, o olhar do laboratorista, aquele olhar que apanha um objeto, uma flor, um inseto e o retalha, o decompõe, o separa em múltiplas partes. Perceber o mundo é não distanciar-se das coisas para envolver-se com elas, mas uma fusão: nós nos fundimos, nós nos dissolvemos no mundo.
A visão trabalha por varredura. Olhamos a cidade como um todo, nossos olhos passeiam de uma ponta para a outra do horizonte vendo edifícios, veículos, pontes e viadutos, árvores e pessoas. Fazemos um apanhado geral da cena, olhamos tudo em "plano geral", como dizem os cineastas. É evidente que dessa forma jamais estaremos atentos aos detalhes: àquela casinha abafada no meio dos prédios, àquele paralítico tentando subir a ladeira, às flores amarelas do ipê que começam a aparecer no final do inverno. Nietzsche dizia ainda que, pela velocidade terrível da vida, o espírito e os olhos acostumam-se com um olhar e um julgamento "pela metade", ou mesmo falso, e que cada um de nós se parece como um viajante de trem, que só conhece um país ou um povo através de seu vagão. Isso quer dizer que vemos o mundo passar na rapidez, na velocidade, no agito cotidiano, e não nos detemos nas coisas. Não temos o olhar do fotógrafo, daquele que depurou o olhar e busca redescobrir as imagens esquecidas.
Fonte: Perca tempo. É no lento que a vida acontece - Ciro Marcondes Filho
Colaboração de Zirair Karmirian Filho
Tenha uma semana saudável.
Abraços
Mário Amorim
OLHAR O MUNDO E NÃO VER NADA
Isto acontece também na leitura: adquirimos o vício de não ler ou não ler direito. Disse o filósofo Nietzsche, em Além do bem e do mal, que lemos muito mal:
"Da mesma forma reduzida como o leitor hoje lê apenas algumas palavras (ou mesmo sílabas) em uma página - ele extrai de vinte palavras mais ou menos cinco ao acaso e "adivinha" nessas cinco palavras o sentido presumido delas -, de forma, igualmente reduzida, vemos hoje uma árvore exata e completa. Mesmo diante dos acontecimentos mais raros, fazemos igual: nós inventamos para nós mesmos boa parte do fato e é muito difícil sermos levados a não nos vermos como "inventores" de algum processo. Isso tudo quer dizer o seguinte: somos, radicalmente, desde sempre, acostumados à mentira. Ou, para expressar de forma virtuosa e hipócrita, ou, digamos, de forma agradável, a gente é muito mais artista do que imagina".
Vemos as palavras, mas não lemos o texto, jamais vemos uma árvore completa, "mentimos" para nós mesmos, diz o filósofo. No filme brasileiro Janela da Alma, um filme sobre o olhar, de João Jardim, é mostrado Egven Bavcar, um fotógrafo cego. Esse homem diz que as novas gerações estão perdendo a capacidade de ver. É um fato estranho numa época em que se diz que a visão é o mais utilizado de todos os sentidos. Vê-se muito, tudo é visual, há telas por toda parte, mas as pessoas não vêem, ou não vêem direito. O mesmo filósofo citado acima comenta também sobre um antigo padre confessor que havia ficado surdo e disse, certa vez, que a gente tem os olhos para ouvir. Dizia ele: em terra de cego, que tem ouvido mais apurado é rei.
Os estudiosos da percepção falam que a visão proporciona aos homens o "espetáculo do mundo", mas sentir o mundo é diferente. Quando sentimos o mundo, nós não apenas vemos, nós aprendemos as qualidades. Quando passamos pelas ruas, um mundo de apelos visuais, de imagens, de fotografias, de cores e de cenas nos chamam a atenção. Nós saímos de nós e dirigimos ao painel publicitário, ao telão, à publicidade nas ruas. Nós vamos para lá. É diferente quando fazemos o movimento inverso, quando deixamos o mundo entrar em nós, e isso não acontece com a visão,mas acontece com a audição, com o tato e com todas as formas de sentir as coisas. Elas entram em nós, instalam-se em nós, produzem em nosso interior uma sensação de incorporação e de mudança.
A visão, falamos acima, é forma de captura, de aprisionamento, é uma maneira de apanhar uma vítima, uma presa. Há certos olhares que são ferinos, que atacam, que chispam, que agridem. Mas não há jamais um ouvir ferino, um sentir ferino. Porque sentir é perceber as coisas instalarem-se em nós, é aprender com elas, é nos desenvolvermos por meio delas, é nos tornarmos mais refinados, atentos, solidários com base no que a natureza e o mundo externo podem nos ensinar. Isso é diferente também da forma como trabalha o olhar científico, o olhar do laboratorista, aquele olhar que apanha um objeto, uma flor, um inseto e o retalha, o decompõe, o separa em múltiplas partes. Perceber o mundo é não distanciar-se das coisas para envolver-se com elas, mas uma fusão: nós nos fundimos, nós nos dissolvemos no mundo.
A visão trabalha por varredura. Olhamos a cidade como um todo, nossos olhos passeiam de uma ponta para a outra do horizonte vendo edifícios, veículos, pontes e viadutos, árvores e pessoas. Fazemos um apanhado geral da cena, olhamos tudo em "plano geral", como dizem os cineastas. É evidente que dessa forma jamais estaremos atentos aos detalhes: àquela casinha abafada no meio dos prédios, àquele paralítico tentando subir a ladeira, às flores amarelas do ipê que começam a aparecer no final do inverno. Nietzsche dizia ainda que, pela velocidade terrível da vida, o espírito e os olhos acostumam-se com um olhar e um julgamento "pela metade", ou mesmo falso, e que cada um de nós se parece como um viajante de trem, que só conhece um país ou um povo através de seu vagão. Isso quer dizer que vemos o mundo passar na rapidez, na velocidade, no agito cotidiano, e não nos detemos nas coisas. Não temos o olhar do fotógrafo, daquele que depurou o olhar e busca redescobrir as imagens esquecidas.
Fonte: Perca tempo. É no lento que a vida acontece - Ciro Marcondes Filho
Colaboração de Zirair Karmirian Filho
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