terça-feira, 23 de novembro de 2010

TIO JOÃO DESIDÉRIO FERNANDES - UM HERÓI ANÔNIMO DO POVO BRASILEIRO

Tio João Desidério Fernandes, 81 anos de uma vida digna (na frente de sua casa)

D.Luzia com o neto Pedro no braço e tio João.



Tio João, Adriana, Assis e D. Luzia


TIO JOÃO DESIDÉRIO FERNANDES – UM HERÓI ANÔNIMO DO POVO BRASILEIRO.

Depois de um intervalo de 18 anos, visitei pela 3ª vez meu tio João no Rio de Janeiro. Fiquei do dia 16 ao dia 22 de novembro na sua companhia e dos meus primos e, dessa vez, pude conversar e saber mais detalhes da sua trajetória de vida na Cidade ( que era prá ser) Maravilhosa. Cheguei no final da tarde e quando estava tomando o café servido por D. Luzia, sua esposa, ouvi um estampido alto e um cheiro forte de pólvora, bem na esquina da casa. Eu pensava que era um rojão de São João, mas foi um tiro de fuzil. Logo em seguida, vi uns rapazes andando armados na rua de forma tranqüila e ostensiva e o meu tio começou a me explicar como era a vida por ali e como esses fatos violentos já haviam se incorporados à rotina de suas vidas. Meu tio se lamentou também, que por conta dessa situação, meu irmão Carlos e sua esposa Zilma, que lá estiveram no mês passado, não havia ficado nem 20 minutos na sua companhia, que quando viram uma pessoa armada com fuzil na esquina da casa, trataram de ir embora. Eu fiquei mais tempo e desfrutei da boa comida caseira de D. Luzia, da cama e do quarto da Andréia, da companhia dos primos e, sobretudo, das conversas com tio João e seus relatos da sua epopéia no Rio de Janeiro, que registro e compartilho.

Tio João chegou no Rio de Janeiro no dia do Padroeiro da Cidade, São Sebastião, 20 de janeiro de 1950. Não sabia ler nem escrever e nem tinha dinheiro. Chegou com a cara e a coragem. Veio no porão do navio Pará do Lloyde Brasileiro e depois de 16 dias de viagem desembarcou no cais da praça Mauá, em frente da rádio Nacional do Rio, sem um tostão no bolso e sem saber do endereço do irmão Raimundo, que já morava no Rio. Procurou uma Delegacia de Polícia e depois de contar a sua situação para o Delegado, ele o acolheu na Delegacia e lá passou uns 16 dias fazendo a limpeza, comendo uma marmitinha e dormindo no chão. Depois achou um parente que morava no mangue da Maré, seu Antônio Caetano e D.Dersa, com quem conseguiu seu primeiro emprego de ajudante de pedreiro. Morou 2 meses com esse casal e depois se tornaram compadres. Quando localizou o irmão, Raimundo Desidério, passou a morar com ele dividindo um quarto na rua da Alfândega. Posteriormente, seu irmão Raimundo veio a falecer por afogamento e, ele ainda pouco familiarizado no Rio, teve que enfrentar essa tragédia familiar e continuar a vida. Uma vida muito dura. Em 1957, foi cumprir o serviço militar obrigatório na 3ª Companhia Especial de Manutenção Blindada do Exército em São Cristovão.Tirou seu tempo no Exército e lá aprendeu a assinar seu nome. Tio João só não foi guia de cego no Rio. Quebrou pedra no Irajá, trabalhou na Refinaria de Manguinhos e, depois de tantos outros trabalhos braçais, acabou se tornando funcionário público federal. Conseguiu uma vaga de jardineiro, através de seu Zé Veloso, conterrâneo de Pedro Velho, na Prefeitura do Campus da UFRJ, na ilha do Fundão, no setor de Paisagismo e Jardins. A “prova” para conseguir esse trabalho foi a de capinar uma área de terra, que ele tirou de letra. Começou nesse trabalho “leve” em 1966, permanecendo nele até 1993, quando então se aposentou.
Tio João casou-se com Luzia da Silva Fernandes,em (19--), uma paraibana de uma comunidade perto de Sapé, dona de um tempero maravilhoso e que faz uma “parida” (Rabanada) de “juntar menino”. Eles tiveram 9 (nove) filhos ( Severino, Antônio, José, Ednaldo, Assis, Alcides, Everaldo, Andréia e Adriana) .Quatro, já casaram (Severino, Antônio, Alcides e Adriana), um está separado (Assis), três estão solteiros (José, Ednaldo e Everaldo) e o xodó da família, Andréia, tem a Síndrome de Down. Os filhos de tio João e D. Luzia já lhes deram 8 netos a saber: Anderson e vanderson, filhos do Severino; Luana, uma “produção independente” do José; Vitória, filha do Assis, que está separado; Juliana e Adriane, do Alcides; e Patrícia e Pedro, da Adriana. Todos esses filhos e netos são do BEM!!! Tio João e D. Luzia, criaram e educaram os filhos, num ambiente “barra pesada”, como se diz, onde o Estado, o Poder Público, quase não se faz presente. Em 1959, eles vieram morar na Baixa do Sapateiro, hoje conhecida como Complexo da Maré, que compreende diversas comunidades. Nesse complexo, os moradores foram aterrando a maré, por conta própria, e construíram seus barracos, conquistados, palmo a palmo das águas e sem apoio do governo. Hoje as construções são em alvenaria, algumas delas, até de 4 pisos. Tio João, mora no mesmo local que conheci em 1974 e que depois visitei em 1992, na rua Princesa Izabel- 37, que faz esquina com a Carmela Dutra, na Comunidade hoje denominada de Nova Holanda. Agora, 18 anos depois da última visita, encontrei uma casa de alvenaria de 2 pisos, bem construída, que meu tio divide com 5 de seus 9 filhos. O local é privilegiado e fica perto de tudo (feira, comércio, escola, hospital,etc. e está há duas quadras da Av. Brasil, de onde você pode ir para qualquer lugar do Rio.) O grande drama é a ausência do Estado, especificamente, na área de segurança pública. O poder paralelo do crime organizado controla todo complexo. Na Comunidade Nova Holanda é o Comando Vermelho –CV, na Comunidade Baixa do Sapateiro é o Terceiro Comando Paralelo –TCP, com suas milícias armadas de fuzil, escopeta, granadas, pistolas ,etc. e que ostentam a céu aberto o seu poderio desfilando nas ruas com suas armas. E no meio disso fica a casa do meu tio João, onde numa de suas paredes, contei 17 buracos de balas, fora os que ele já tapou. Chegar aos 81 anos, ter compartilhado mais de 50 anos de casado com D. Luzia, com quem criou e educou 9 filhos, mantendo-os no bom caminho, através do trabalho duro e honesto e tudo isso num ambiente perigoso e adverso é como diz o ditado que circula na comunidade: É BORRACHA MUITO FORTE. Por isso eu não tenho dúvida, que o meu tio João é um desses heróis anônimos do povo brasileiro.

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