segunda-feira, 23 de novembro de 2009

DO LIVRO "GAVETA DE SAPATEIRO"

Carta de um matuto do Piauí, semi analfabeto, para sua mãe.
"Mamãe, Parnaíba é uma cidade monarca de grande. Demanhãzinha se alvoroça tanta gente na beira do rio que parece formiga arredó de lagartixa morta e quase tudo é trabaiadô caçando ganho. O mercado é outro despotismo: se arreune mais povo do que na desobriga, quando padre diz missa na capela dos Morro, da dona Chiquinha. Tudo se vende; de tudo se faz dinheiro; fiquei besta de espiar gente comprando maxixe, quiabo, limão azedo, folha de joão gome e inté taiada de girimun. O passadio daqui é bom. Todo dia eu como pão da cidade com manteiga do reino.
Mamãe, as coisas aqui são muito diferentes e adversas daí. As casas são apregadas umas nas outras que nem casa de maribondo de parede e é quase tudo de telha e atijolada e umas delas calçada e forrada de tauba por riba que nem gaiola de xexéu e que chama sobrado. gente rica aqui é demais. Inda ontem numa loja eu vi uma ruma de dinheiro de cobre no chão que parecia juá, quando se ajunta mode dar a bode em chiqueiro.
Mamãe, a Igreja faz intá sobroço, de tão grande e alta. cabe dentro dela todos os moradores de Barra da Lage, do Bom Princípio, da Fazenda Nova e ainda se adquire lugar para mais de cem vivente. O povo daqui tem um sestro muito engraçado: não diz "Ô de casa" não! quando chegam na casa alêia, batem palma como quem estruma cachorro mode acuar tatu em buraco.
Mamãe, a luz daqui é feita num tal de gazome; não precisa pavio nem trucida de algodão mode acender; é só destrocer uma torneira como quem tira cachapa de ancoreta e riscar um fosco que a luz acende biatamente e tão clara que faz é gosto! Se o cristão não acender mais que depressa, espaia um cheiro de cebola podre danado, diz que pro via de um tal de carboreto.
Mamãe, aqui tem um jogo chamado biá que não hai diabo que entenda, mas porém so joga nele gente de famia: é arredó duma mesa grande, forrada cum pano, como baú de pregaria, e os jogador segurando umas varas mode empurrar umas bolas que é ver ovo de ema. Quando estão jogando, dê por vista dois mexedor de farinha num forno de barro, ajeitando os rodo mode não desmanchar os beijú.
Mamãe, aqui tem também um latejo invisive que é um tal de cinema. É só a musga tocar, aparece umas figura de gente, de animal e de rua, tudo perfeito mesminho que se tivesse vivo e bolindo. O cinema é um pano esticado, parecido com vela de embarcação é a coisa mais bonita e mais encantada que eu já vi.
Mamãe, cheguei ontem de Tutoia. Fui na barca da companhia Busse mode trabaiá num vapô inglez, ganhando dois minréis por dia e quatro por noite.na Tutoia a gente vê o mar até onde ele bate nas paredes do céu. As barca sacode a gente faz dor de istambo e vontade de vomitá que nem urubu novo, tudo isso pru via do desassossego do mar. O vapor inguilês é um paidegua de grande, maior do que a vasante de fumo de compadre Domingo preto e mais alto do que o pé de tamarina da porta lá de casa. Os porão de botar carga são tão fundo que escurece a vista do cristão que espia. O pessoal que mora no vapor são tudo branco rozalgá, oio azul e cabelo vermeio. A fala deles só pro diabo, não hai quem entenda; é uma embruiada como de piriquito em roça de milho novo. São danado por papagaio ou por uma garrafa de de geribita. Quando os inguilês cunversa uns cos outros é uma trapaida direitinho a de tia Damiana adispois que teve a moléstia do ar. Outra coisa engraçada que eu acho é os inguilês do vapor tudo se chamar piloto; mode coisa que os padre da terra deles não batiza ninguém com outro nome.
Mamãe, prá eu lhe contar tudo direitamente não hai papel que chegue. Vou acabar porque já me dói as boneca dos dedo de eu tanto escrever."
(Do livro: Gaveta de Sapateiro de José Cavalcanti. Páginas 34 a 36)

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